Pode-se dizer que Howard era um estilista de palavras!
O personagem principal deste volume, Solomon Kane, foi o primeiro herói de aventura do escritor. Embora outra grande criação sua, Bran Mak Morn, o rei dos pictos, tenha vindo cronologicamente antes, Howard não conseguiu publicá-la com facilidade; assim, Kane estreou primeiro, em agosto de 1928, na revista Weird Tales, publicação que lançou grande parte do material do escritor. Essa primeira história de Kane, a acachapante Red shadows (Sombras vermelhas), foi escrita em meados de 1927 e submetida à revista Pulp Argosy com o título Solomon Kane. De acordo com uma carta datada de 1928, que Howard escreveu para seu amigo, Tevis Clyde Smith, a Argosy ofereceu 80 dólares pelo conto, um valor baixo até mesmo para os padrões da época, e o editor apontou diversos aspectos que considerava falhos no conto e que precisariam de uma revisão.
Howard, então, apresentou o material para a Weird Tales, que ofereceu ao escritor um pagamento mais polpudo e também a capa daquele mês. A única alteração solicitada pelo editor da WT, Farnsworth Wright, foi uma mudança de título. Surgiu, assim, Red shadows. Uma curiosidade interessante é que a versão francesa do livro The savage tales of Solomon Kane (Contos selvagens de Solomon Kane) – o primeiro da editora Wandering Star – apresentou o título original da aventura, nunca antes publicado. De acordo com Patrice Louinet, tradutor e organizador do volume, ele se sentia mais conectado ao título Solomon Kane do que a Red shadows e, tendo em vista a proximidade do filme de 2009, julgou que seria um bom momento para a mudança. A iniciativa funcionou, e, posteriormente, outras edições para o mercado americano seguiram a alteração.
Howard escreveu nove contos do puritano, tendo publicado sete deles em vida. Os dois restantes só foram apresentados ao público décadas mais tarde, nos anos 1960, depois do sucesso de Conan. Após a morte do escritor, quatro fragmentos inacabados foram encontrados: Death’s black riders, The castle of the devil, The children of Asshur e Hank of Basti. Alguns escritores labutaram para completar esses textos em diferentes países, ocasiões e publicações, mas nunca conseguiram atingir o brilhantismo da prosa original. Por fim, Howard também escreveu três poemas com o puritano Kane: “The one black stain” (A mancha negra), “The return of sir Richard Grenville” (O retorno de sir Richard Grenville) e o melancólico “Solomon Kane’s homecoming” (A volta ao lar de Solomon Kane), este fundamental para a cronologia do herói, pois narra seu retorno à Inglaterra após anos de andanças pelo mundo.
Uma das melhores aventuras desta edição, A chama azul da vingança, tem uma história de bastidores particularmente interessante. Escrita em 1929, Howard tentou vendê-la para a Argosy e depois para a Adventure, mas o conto foi recusado por ambas. A seguir, como de costume, ele alterou o personagem principal – de Solomon Kane para Malachi Grim –, alguns aspectos do texto e o título original, de The blue flame of vengeance (A chama azul da vingança) para Blades of the brotherhood (Lâminas da irmandade), e tentou efetuar nova venda. Essa mesma estratégia já havia funcionado em outras ocasiões, como na primeira aventura de Conan, releitura de uma história do Rei Kull. Contudo, dessa vez, Howard não conseguiu vender a história e morreu sem ver este excelente conto publicado.
Em 1964, a editora norte-americana Arkham House decidiu incluir o conto em uma coletânea chamada Over the edge (No limite), mas, por se tratar de um selo essencialmente de terror e fantasia, encarregou o escritor John Pocsik de fazer uma revisão completa na história, alterando o que fosse necessário para inserir elementos sobrenaturais que combinassem com o tema do livro. A versão de Pocsik descaracterizou por completo o texto de Howard, e embora na introdução do livro o editor August Derleth afirme que a história se baseia em um rascunho deixado pelo escritor, a verdade é que Howard havia redigido uma versão completa, e Pocsik a adulterou. Ele omitiu elementos importantes, como a luta de facas, e também mudou a natureza do vilão sir George, além de inserir elementos sobrenaturais na trama.
Revisões nos escritos de Howard, infelizmente, não são novidade, sendo o caso mais famoso o dos escritores Lin Carter e L. Sprague de Camp. Na década de 1960, ambos se apropriaram do material original e deram início a um longo processo de republicação, no qual fizeram dezenas de revisões e releituras, em especial nas histórias de Conan. As versões revistas descaracterizavam totalmente a base de conceitos e de ideias originais de Howard, mas, lamentavelmente, durante anos, esse foi o principal material do autor que esteve disponível nos Estados Unidos e na Inglaterra.
A versão intocada de Howard de A chama azul da vingança só foi publicada na íntegra quatro anos depois, quando Donald M. Grant lançou a emblemática coletânea Red shadows, belamente ilustrada por imagens coloridas de Jeff Jones, que trouxe todos os textos de Kane, exceto por um fragmento. Foi essa edição que resgatou o conto original de Howard; entretanto, para distingui-lo daquele lançado alguns anos antes pela Arkham, Grant preferiu trazer de volta o título Blades of the brotherhood, que Howard havia adotado em sua versão da história com Malachi Grim. Esse título se manteve e foi utilizado em outras republicações durante anos, até que Rusty Burke, ao editar o livro da Wandering Star, The savage tales of Solomon Kane, achou por bem resgatar a denominação original. A versão adulterada de John Pocsik jamais voltou a ser publicada e hoje subsiste como mera curiosidade, pela confusão que causou na bibliografia de Kane.
As histórias de Solomon Kane diferem bastante da costumeira aventura de espada e feitiçaria. O puritano é, possivelmente, o personagem mais complexo de Howard, superando até mesmo o bárbaro Conan, cujas aventuras são dirigidas pela ação, mas carecem de aprofundamento psicológico, embora o escritor tenha usado seu bárbaro mais famoso para tecer críticas sociais, políticas e religiosas.
Kane carrega dentro de si uma obsessão que o próprio Howard não consegue explicar; algo antinatural, cujo nível exacerbado beira o fanatismo. A alma de Kane, tão educado e polido, arde em fúria selvagem, e suas ações promovem uma intensidade que atravessa todas as páginas e não dá descanso ao leitor. Ao ler histórias de Conan, as motivações do bárbaro estão sempre claras; porém, ao ler Solomon Kane, subsiste a pergunta: o que move esse homem? Será o puritanismo apenas uma fachada, um verniz, uma desculpa para ocultar a verdadeira natureza do que há dentro dele? Na verdade, padecerá Solomon Kane de todos os males que enfrenta tão ferozmente? Será mero acaso que seus ímpetos se voltem para a proteção dos fracos e não para o seu abuso?
Não há respostas simples.
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