Kane vive por suas próprias regras em um mundo de trevas e misticismo. Sua crença inabalável no Divino é um aspecto a ser ressaltado, principalmente se levado em conta que Howard era ateu. A forma com que o escritor conduz os textos deixa quase transparecer que ele, Howard, admira Kane, talvez por ser algo que ele próprio não consiga.
O mundo de fantasia de Solomon Kane foi apresentado aos leitores brasileiros nas revistas de Conan lançadas pela editora Abril a partir de 1984, sempre como coadjuvante. Assim como outros personagens de Howard, ele jamais recebeu o devido destaque em nosso país, nem mesmo quando um filme com base em suas aventuras chegou aos cinemas em 2009.
As histórias são apresentadas nesta edição na ordem de sua publicação, e não na ordem em que Howard as escreveu, mas, curiosamente, A chama azul da vingança parece fechar com perfeição a saga do puritano, deixando ainda um gostinho de “quero mais”.
A fim de melhor apresentar aos leitores a história desse escritor tão maravilhoso e complexo que foi Robert E. Howard, esta edição, assim como outras posteriores que trarão seus trabalhos, apresenta um apêndice, com material complementar. Para este volume, foram selecionadas duas cartas que jogam certa luz sobre a controversa relação que o escritor tinha com a morte. Como o suicídio de Howard é assunto de tremenda discussão e desperta enorme curiosidade nos fãs, esse me pareceu um tema adequado a ser abordado. Uma das cartas é de maio de 1936, ou seja, apenas um mês antes de sua morte, e foi endereçada ao antologista e editor August Derleth, lembrado comumente por ter sido o primeiro editor de H. P. Lovecraft. A missiva é ainda mais notável por apresentar um fragmento de um poema inédito de Howard, no qual ele critica a civilização e os rumos que a vida do homem tomou longe da natureza. A outra carta, redigida pelo pai de Howard para o escritor H. P. Lovecraft, anuncia e justifica a morte de seu filho; uma melancólica narrativa, que impressiona pela forma como o doutor Isaac Mordecai Howard descreve o comportamento de seu filho e lida com a inevitabilidade do fato. O apêndice também inclui uma dissertação sobre o filme Solomon Kane, o caçador de demônios, seus erros e acertos, além de comentários sobre o fan film The return of sir Richard Grenville, com a inclusão do poema original, de forma que o leitor possa assistir ao filme on-line e acompanhá-lo com a leitura da obra.
Boa leitura!
Alexandre Callari
Sumário
Sombras vermelhas
As caveiras nas estrelas
O chacoalhar de ossos
A Lua das caveiras
As colinas dos mortos
Passos interiores
Asas da noite
A mão direita do destino
A chama azul da vingança
Apêndice
Cartas
Solomon Kane – o filme


1. A vinda de Solomon
A luz do luar brilhava vagamente, criando névoas prateadas de ilusão em meio às sombras das árvores. Uma brisa fraca sussurrava pelo vale, carregando uma sombra que não era a bruma da Lua. Um odor mortiço de fumaça se fazia sentir.
O homem, cujas passadas longas, despreocupadas, porém constantes, o havia carregado por muitos quilômetros, desde o pôr do sol, parou repentinamente. Uma agitação chamou sua atenção nas árvores, e ele moveu-se em silêncio, em direção às sombras, com uma das mãos levemente pousada no cabo de seu longo florete.
Avançou com cautela, os olhos lutando para penetrar as trevas que se aninhavam sob as árvores. Aquele era um país selvagem e ameaçador, e a morte poderia estar à sua espera sob aquelas árvores. Então, sua mão largou o cabo do florete, e ele se inclinou para a frente. Sem dúvida, a morte estava ali, mas não em uma forma que lhe pudesse causar medo.
– Por todos os demônios – ele murmurou. – Uma garota! O que a machucou, menina? Não tenha medo de mim.
A garota olhou para ele; seu rosto parecia uma rosa branca no escuro.
– Você... Quem é você? – as palavras dela saíam em arfadas.
– Ninguém além de um viajante, um homem sem terra, mas amigo de todos em necessidade – a gentil voz soou, de algum modo incoerente, vinda do homem.
A garota buscou sustentar seu corpo usando o cotovelo, e ele imediatamente se aproximou, ajoelhando-se, para colocá-la sentada, com a cabeça apoiada em seu ombro. A mão dele, ao tocar no peito da garota, ficou vermelha e molhada.
– Diga-me... – a voz dele era macia e tranquilizadora, como alguém falando com um bebê.
– Le Loup – ela resfolegou, com a voz esmorecendo rapidamente. – Ele e seus homens atacaram nossa vila, um quilômetro e meio, vale acima. Roubaram, mataram, queimaram...
– Foi essa, então, a fumaça que eu vi – murmurou o homem.
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