Ele morreu, mas, pouco antes, contou-me que a havia vendido a um comerciante de Istambul.
O inglês relatou ter seguido para o Oriente, onde, por acaso, se deparou com um marinheiro grego, crucificado pelos mouros em uma praia após ser acusado de pirataria.
– Eu o libertei e repeti a mesma pergunta já feita a tantos homens: se, em suas peregrinações, ele havia visto uma menina inglesa de cachos amarelos, que se tornou prisioneira. Descobri que ele, ao embarcar em um navio de comerciantes de Istambul, viu você entre a tripulação. Na sua viagem de volta para casa, o barco foi a pique após ser capturada por um escravagista português.
Kane afirmou que o renegado grego e a jovem foram alguns dos poucos levados para bordo do outro navio.
– Esse escravagista, após singrar para o sul em busca de mármore negro, foi emboscado em uma pequena baía na Costa Oeste da África; contudo, o grego não sabia qual o destino da nau, pois conseguiu escapar do massacre, mas, ao tomar um bote e seguir por mar aberto, acabou capturado por um navio de piratas genoveses.
O puritano contou que pegou a rota da África.
– Cheguei à Costa Oeste, pensando na remota chance de que você ainda estivesse viva, e lá, entre os nativos, escutei que alguns anos atrás uma criança branca havia sido levada por um navio, cuja tripulação fora assassinada, e mandada para o interior, como parte do tributo que as tribos do litoral pagam aos chefes rio acima.
Então, todos os rastros desapareceram.
– Durante meses, vaguei sem nenhuma pista do seu paradeiro. Nada, nem sequer uma alusão de que ainda estivesse viva. Depois, escutei casualmente as tribos do rio falarem sobre a cidade demoníaca de Negari e sua rainha maligna, que mantinha uma mulher estrangeira como escrava. E cheguei até aqui.
O tom adotado por Kane em sua narração, sem polimento, não dava qualquer mostra do pleno significado daquela história... Do que havia por trás daquelas palavras calmas e elaboradas... As lutas no mar e na terra... Os anos de privação e labuta pesada, o perigo incessante, as peregrinações constantes por territórios hostis e desconhecidos; o trabalho tedioso e mortificante de investigar qualquer pista, interrogando selvagens ignorantes, carrancudos e pouco amigáveis.
– Eu cheguei até aqui – disse Kane com simplicidade.
Mas que universo de coragem e esforço aquela frase simbolizava! Uma longa trilha vermelha, sombras negras e rubras, tecendo uma dança infernal... Marcada por espadas faiscantes e pela fumaça da batalha... Por palavras vacilantes que caíam como gotas de sangue dos lábios de moribundos.
Decerto, Solomon Kane não era um homem conscientemente dramático. Ele contou sua história da mesma maneira como havia superado terríveis obstáculos: friamente, de forma breve e sem heroísmos.
– Veja, Marylin – ele concluiu de jeito terno –, não cheguei até aqui e fiz isso tudo para encontrar a derrota. Seja forte, criança. Encontraremos uma maneira de sair desse horrível lugar.
– Sir John me levou na sela de seu cavalo – a jovem falou desorientada, como se sua própria língua lhe soasse estranha, por conta dos anos de desuso; mas, buscando uma cadência, tentou destravar as palavras, com um inglês obscuro de muito tempo atrás. – Ele me levou até a costa, onde o bote de uma galé estava à espera, ocupado por homens ferozes e morenos, de bigodes, e portando cimitarras e grandes anéis nos dedos. O capitão, um muçulmano com o rosto como o de um falcão, pegou-me, enquanto eu chorava de medo, e arrastou-me até sua galé. Contudo, à sua própria maneira, ele foi gentil comigo. Eu era pouco mais que uma criança. Afinal, ele me vendeu a um comerciante turco, conforme lhe contaram.
O capitão muçulmano encontrou o turco na costa sul da França após muitos dias de viagem pelo mar.
– O comerciante não abusou de mim, mas eu o temia, pois ele era um homem de feições cruéis, e fez com que eu soubesse que seria vendida a um sultão negro dos mouros – contou Marylin. – Entretanto, nos Portões de Hércules, sua embarcação foi abalroada por um navio escravagista de Cadiz, e as coisas se sucederam conforme você narrou.
“O capitão do navio negreiro achou que eu era a filha de alguma rica família inglesa – ela continuou – e tinha a intenção de me manter cativa em troca de um resgate. Mas ele morreu, com todos os seus homens, em alguma baía sombria na costa africana, sobrando apenas o grego que você mencionou e eu, que acabei aprisionada por um selvagem chefe tribal.
A jovem relatou que ficou terrivelmente amedrontada.
– Achei que ele fosse me matar, mas, sem qualquer ferimento, enviou-me país acima com uma escolta que também carregava pilhagens do navio. O saque, juntamente comigo, era, como você sabe, destinado a um rei poderoso das tribos do rio. Porém, jamais chegou até ele, pois um bando nômade de Negari atacou os guerreiros da costa e os dizimou. A seguir, fui trazida até essa cidade e, desde então, tenho sido escrava da rainha Nakari.
“Como sobrevivi por todas aquelas pavorosas cenas de batalha, crueldade e assassinato, não sei – ela suspirou.”
– A providência a resguardou, criança – disse Kane. – O poder que toma conta de mulheres fracas e de crianças indefesas, o mesmo poder que me guiou até você a despeito de todos os obstáculos, e que ainda nos levará para fora deste lugar: a vontade de Deus.
– Meu povo! – ela exclamou repentinamente, como se acordasse de um sonho. – O que foi feito dele?
– Todos gozam de fortuna e boa saúde, criança, a não ser pelo fato de que têm chorado por você durante esses longos anos. Apenas o velho sir Mildred está com gota e, por isso, de quando em quando temo por sua alma. Contudo, parece-me que, caso ele a veja, pequena Marylin, isso o restaurará.
– Ainda assim, capitão Kane – disse a menina –, não consigo entender por que veio só.
– Seus irmãos teriam vindo comigo, criança, mas era incerto saber se você ainda vivia, e eu não queria que nenhum outro Taferal morresse em uma terra distante do bom solo inglês. Livrei o país de um Taferal maligno... Portanto, cabia a mim e a mais ninguém colocar em seu lugar uma boa Taferal, se ela, evidentemente, ainda vivesse.
Essa explicação convencia o próprio Kane.
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