Era uma sensação inquietante atravessar aquele vasto salão, que parecia oco, sem vida humana, mas, em alguma outra parte, Kane sabia que poderia haver multidões ocultas de sua vista pelos pilares.
Por fim, após o que pareceu ser uma eternidade seguindo por aqueles labirintos monstruosos, ele chegou a uma enorme parede que parecia ser a lateral do salão ou, talvez, uma divisória. Continuando seu caminho, deparou-se com um acesso, diante do qual dois lanceiros estavam postados como estátuas negras.
Escondido atrás da base de uma coluna, Kane observou duas janelas no alto, uma de cada lado da porta; reparando nos entalhes ornamentais que cobriam a parede, pensou em um plano desesperado.
Julgava imperativo descobrir o que havia lá dentro. O fato de estar sob guarda sugeria que atrás da porta haveria uma câmara do tesouro ou um calabouço, e descobrir o que era tornou-se seu objetivo.
Kane recuou até um ponto fora da visão dos guardas e começou a escalar a parede, usando os profundos entalhes como apoios para mãos e pés. A tarefa mostrou-se mais fácil do que esperava, e, ao chegar à mesma altura das janelas, rastejou cautelosamente, sentindo-se como uma formiga em uma parede. Os guardas lá embaixo não olharam para cima, e ele, afinal, colocou-se sobre o peitoril da janela mais próxima. Olhou pelo vidro e viu uma sala grande e vazia, porém equipada de maneira lasciva e bárbara. Sofás de seda e travesseiros de veludo se espalhavam pelo chão, com grossas tapeçarias repletas de detalhes dourados penduradas nas paredes azulejadas. Também havia ouro nos trabalhos que decoravam o teto.
Berloques brutos de marfim e pau-ferro, tão incongruentes e de estilo selvagem inconfundível, iluminavam o local; símbolos daquele estranho reino onde sinais de barbarismo competiam com uma excêntrica cultura. O acesso externo estava fechado e, na parede oposta, havia mais uma porta, também lacrada.
Kane desceu da janela, deslizando pela beirada de uma tapeçaria, tal qual um marinheiro escorrega pela corda de uma vela, e cruzou a sala. Seus pés afundaram no espesso tecido do tapete que cobria o chão, e que, a exemplo dos demais móveis, parecia tão antigo que beirava a decadência.
À porta, ele hesitou. Adentrar a sala seguinte poderia ser algo desesperadamente perigoso; se ela estivesse repleta de guerreiros, sua fuga seria impedida pelos lanceiros do lado de fora da outra porta. Ainda assim, acostumado a correr brutais riscos de toda espécie, empunhou sua espada e abriu a porta repentinamente, para surpreender, ainda que por um instante, qualquer inimigo que, por ventura, estivesse do outro lado. Kane deu um passo rápido, pronto para tudo... Mas a seguir, atônito durante um segundo, parou de súbito. Depois de cruzar milhares de quilômetros, lá estava, diante dele, o objeto de sua busca.
3. Lilith
Senhora do mistério,
Qual é sua história?
– Viereck
Havia um divã no meio da sala e, em sua superfície de seda, uma mulher deitada. Uma mulher de pele branca, cujo cabelo de ouro avermelhado caía sobre seus ombros nus. Ela levantou-se de uma vez, deixando o medo inundar seus lindos olhos cinzentos, com os lábios abertos para proferir um grito, mas conteve-se.
– Você! – ela exclamou. – Como foi que você...?
Solomon Kane fechou a porta e caminhou em sua direção, esboçando um raro sorriso no rosto taciturno.
– Você se lembra de mim, não, Marylin?
O medo já havia desaparecido dos olhos da mulher, substituído por um olhar de incrível admiração e atordoante espanto:
– Capitão Kane! Não consigo entender... Parecia que ninguém jamais viria...
Ela levou sua pequena mão à testa, cambaleando de repente.
Kane a pegou em seus braços – ela era apenas uma criança – e deitou-a com gentileza no divã. Então, esfregando os pulsos da moça com suavidade, ele falou em tom baixo, monótono e apressado, mantendo o olho na porta o tempo todo. A porta, a propósito, parecia ser a única forma de entrar ou de sair da câmara. Enquanto falava e observava tudo à sua volta, notou que o cômodo era quase uma duplicata da outra sala externa no tocante a cortinas e mobília em geral.
– Primeiro, antes de qualquer outra coisa, diga-me: você está sendo vigiada de perto? – o puritano perguntou.
– Muito de perto, senhor – ela murmurou desesperadamente. – Não sei como chegou até aqui, mas jamais conseguiremos fugir.
– Permita-me contar rapidamente como a encontrei, e, quem sabe, você se sinta mais esperançosa quando souber das dificuldades que já superei. Deite-se em silêncio agora, Marylin, e lhe contarei como vim à procura de uma herdeira inglesa na cidade demoníaca de Negari.
“Eu matei sir John Taferal em um duelo. Quanto ao motivo, não importa, mas calúnia e mentiras negras estão por trás de tudo. Antes de morrer, ele confessou que cometera um crime abominável alguns anos antes. Lembra-se, é claro, da afeição que seu primo, o velho lorde Hildred Taferal, tio de sir John, tinha por você! Pois sir John temia que o antigo lorde, ao morrer sem descendentes, deixasse as grandes propriedades dos Taferal para você.
“Anos atrás, quando você desapareceu, sir John espalhou o boato de que havia se afogado – continuou Kane. – Entretanto, antes de morrer com meu florete atravessado em seu corpo, ele confessou tê-la raptado e vendido a um corsário da Berbéria. Portanto, parti à sua procura, percorrendo essa trilha longa e cansativa que se estendeu por longas léguas e anos amargos.”
El Gar era o nome do pirata sangrento, mencionado por sir John e conhecido nas costas da Inglaterra.
– Primeiro, naveguei os mares em busca de El Gar, até encontrá-lo em meio à colisão e aos rugidos de uma batalha no oceano.
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