Com seus próprios olhos o verá.
DURVAL
Era elegante e bela há bons dois anos. Sê-lo-á ainda? Não será? Dilema de Hamlet.
E como gostava de flores! Lembras-te? Aceitava-mas sempre não sei se por mim, se pelas flores; mas é de crer que fosse por mim.
ROSINHA
Ela gostava tanto de flores!
DURVAL
Obrigado. Dize-me cá. Por que diabo sendo uma criada, tiveste sempre tanto espírito e mesmo…
ROSINHA
Não sabe? Eu lhe digo. Em Lisboa, donde viemos para aqui, fomos condiscípulas: estudamos no mesmo colégio, e comemos à mesma mesa. Mas, coisas do mundo!… Ela tornou-se ama e eu criada! É verdade que me trata com distinção, e conversamos às vezes em altas coisas.
DURVAL
Ah! é isso? Foram condiscípulas. (levanta-se) E conversam agora em altas coisas!… Pois eis-me aqui para conversar também; faremos um trio admirável.
ROSINHA
Vou participar-lhe a sua chegada.
DURVAL
Sim, vai, vai. Mas olha cá, uma palavra.
ROSINHA
Uma só, entende?
DURVAL
Dás-me um beijo?
ROSINHA
Bem vê que são três palavras. (entra à direita)
CENA II
DURVAL e BENTO
DURVAL
Bravo! A pequena não é tola… tem mesmo muito espírito! Eu gosto dela, gosto!
Mas é preciso dar-me ao respeito. (vai ao fundo e chama) Bento! (descendo) Ora depois de dois anos como virei encontrar isto? Sofia terá por mim a mesma queda?
É isso o que vou sondar. É provável que nada perdesse dos antigos sentimentos.
Oh! decerto! Vou começar por levá-la ao baile mascarado; há de aceitar, não pode deixar de aceitar! Então, Bento! mariola?
BENTO
(entrando com um jornal)
Pronto.
DURVAL
Ainda agora! Tens um péssimo defeito para boleeiro, é não ouvir.
BENTO
Eu estava embebido com a interessante leitura do Jornal do Comércio: ei-lo. Muito mudadas estão estas coisas por aqui! Não faz uma ideia! E a política? Esperam-se coisas terríveis do parlamento.
DURVAL
Não me maçes, mariola! Vai abaixo ao carro e traz uma caixa de papelão que lá está… Anda!
BENTO
Sim, senhor; mas admira-me que V. S. não preste atenção ao estado das coisas.
DURVAL
Mas que tens tu com isso, tratante?
BENTO
Eu nada; mas creio que…
DURVAL
Salta lá para o carro, e traz a caixa depressa!
CENA III
DURVAL e ROSINHA
DURVAL
Pedaço d’asno! Sempre a ler jornais; sempre a tagarelar sobre aquilo que menos lhe deve importar! (vendo Rosinha) Ah!… és tu? Então ela… (levanta-se)
ROSINHA
Está na outra sala à sua espera.
DURVAL
Bem, aí vou. (vai entrar e volta) Ah! recebe a caixa de papelão que trouxer meu boleeiro.
ROSINHA
Sim, senhor.
DURVAL
Com cuidado, meu colibri!
ROSINHA
Galante nome! Não será em seu coração que farei o meu ninho.
DURVAL
(à parte)
Ah! É bem engraçada a rapariga! (vai-se)
CENA IV
ROSINHA, DEPOIS BENTO
ROSINHA
Muito bem, Sr. Durval. Então voltou ainda? É a hora de minha vingança. Há dois anos, tola como eu era, quiseste seduzir-me, perder-me, como a muitas outras! E
como? mandando-me dinheiro… dinheiro! — Media as infâmias pela posição.
Assentava de… Oh! mas deixa estar! vais pagar tudo… Gosto de ver essa gente que não enxerga sentimento nas pessoas de condição baixa… como se quem traz um avental, não pode também calçar uma luva!
BENTO
(traz uma caixa de papelão)
Aqui está a caixa em questão… (põe a caixa sobre uma cadeira) Ora, viva! Esta caixa é de meu amo.
ROSINHA
Deixe-a ficar.
BENTO
(tirando o jornal do bolso)
Fica entregue, não? Ora bem! Vou continuar a minha interessante leitura… Estou na gazetilha — Estou pasmado de ver como vão as coisas por aqui! — Vão a pior.
Esta folha põe-me ao fato de grandes novidades.
ROSINHA
(sentando-se de costas para ele)
Muito velhas para mim.
BENTO
(com desdém)
Muito velhas? Concedo. Cá para mim têm toda a frescura da véspera.
ROSINHA
(consigo)
Quererá ficar?
BENTO
(sentando-se do outro lado)
Ainda uma vista d’olhos! (abre o jornal) ROSINHA
E então não se assentou?
BENTO
(lendo)
Ainda um caso: “Ontem à noite desapareceu uma nédia e numerosa criação de aves domésticas. Não se pôde descobrir os ladrões, porque, desgraçadamente havia uma patrulha a dois passos dali.”
ROSINHA
(levantando-se)
Ora, que aborrecimento!
BENTO
(continuando)
“Não é o primeiro caso que dá nesta casa da rua dos Inválidos.” (consigo) Como vai isto, meu Deus!
ROSINHA
(Abrindo a caixa)
Que belo dominó!
BENTO
(indo a ela)
Não mexa! Creio que é para ir ao baile mascarado hoje…
ROSINHA
Ah!… (silêncio) Um baile… hei de ir também!
BENTO
Aonde? Ao baile? Ora esta!
ROSINHA
E por que não?
BENTO
Pode ser; contudo, quer vás, quer não vás, deixa-me ir acabar a minha leitura naquela sala de espera.
ROSINHA
Não… tenho uma coisa a tratar contigo.
BENTO
(lisonjeado)
Comigo, minha bela!
ROSINHA
Queres servir-me em uma coisa?
BENTO
(severo)
Eu cá só sirvo ao Sr. Durval, e é na boleia!
ROSINHA
Pois hás de me servir. Não és então um rapaz como os outros boleeiros, amável e serviçal…
BENTO
Vá feito… não deixo de ser amável; é mesmo o meu capítulo de predileção.
ROSINHA
Pois escuta. Vais fazer um papel, um bonito papel.
BENTO
Não entendo desse fabrico. Se quiser algumas lições sobre a maneira de dar uma volta, sobre o governo das rédeas em um trote largo, ou coisa cá do meu ofício, pronto me encontra.
ROSINHA
(que tem ido buscar o ramalhete no jarro)
Olha cá: sabes o que é isso?
BENTO
São flores.
ROSINHA
É o ramalhete diário de um fidalgo espanhol que viaja incógnito.
BENTO
Ah! (toma o ramalhete)
ROSINHA
(indo a uma gaveta buscar um papel)
O Sr. Durval conhece a tua letra?
BENTO
Conhece apenas uma. Eu tenho diversos modos de escrever.
ROSINHA
Pois bem; copia isto. (dá-lhe o papel)
Com letra que ele não conheça.
BENTO
Mas o que é isto?
ROSINHA
Ora, que te importa? És uma simples máquina. Sabes tu o que vai fazer quando o teu amo te indica uma direção ao carro? Estamos aqui no mesmo caso.
BENTO
Fala como um livro! Aqui vai. (escreve)
ROSINHA
Que amontoado de garatujas!…
BENTO
Cheira a diplomata. Devo assinar?
ROSINHA
Que se não entenda.
BENTO
Como um perfeito fidalgo.
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