Confissão

XV. A enjeitada

XVI. Alma sóror

Momento histórico

Momento literário

Glossário

Créditos

Volume I

 

image1.webp

I

Capanga

Eram dois, ele e ela, ambos na flor da beleza e da mocidade.

O viço da saúde rebentava-lhes no encarnado das faces, mais aveludadas que a açucena escarlate recém-aberta ali com os orvalhos da noite. No fresco sorriso dos lábios, como nos olhos límpidos e brilhantes, brotava-lhes a seiva d’alma.

Ela, pequena, esbelta, ligeira, buliçosa, saltitava sobre a relva, gárrula e cintilante do prazer de pular e correr; saciando-se na delícia inefável de se difundir pela criação e sentir-se flor no regaço daquela natureza luxuriante.

image2.webp

Ele, alto, ágil, de talhe robusto e bem conformado, calcando o chão sob o grosseiro soco da bota com a bizarria de um príncipe que pisa as ricas alfombras, seguia de perto a gentil companheira, que folgava pelo campo, a volutear e fazendo-lhe mil negaças, como a borboleta que zomba dos esforços inúteis da criança para a colher.

Caminhavam por uma rechã, bordada de ilhas de mato, que emergiam aqui e ali do verde gramado. Pela ramagem frondente das árvores e renovos que abrolhavam, percebia-se a proximidade de uma grande manancial, e entre as crepitações da brisa nas folhas, como um tom opaco desse arpejo da solidão, ouvia-se o múrmure soturno do Piracicaba, que leva ao Tietê o tributo caudal de suas águas.

Sete horas da manhã haviam de ser. A luz de um Sol esplêndido fluía no éter, que a trovoada da véspera tinha acendrado. O céu arreava-se do azul diáfano onde a fantasia se embebe com a voluptuosidade casta da criança a aconchegar-se dentro, tão dentro do grêmio materno.

image3.webp

Bem longe do céu, porém, e bem presos à terra andavam os olhos dos nossos dois amiguinhos, que nem haviam reparado sequer na limpidez da atmosfera. Ainda estavam na sazão feliz, em que respira o céu, como o ar da vida, e o aroma do campo, quase sem o sentir.

Às flores, que a noite desabrochara; aos frutos silvestres que enfeitavam a copa das árvores; aos passarinhos que trinavam embalando-se nas franças dos coqueiros; ao que era da terra e bem da terra, iam os impulsos desses jovens corações, quando não se volviam um para o outro, a reverem-se entre si.

O céu, essa imensa tela azul, que foi cúpula de um berço, o da luz, e será mais tarde véu de um leito, o da vida; a alma só o procura, só o contempla, quando a dor a prostra. Mas para aquela que sorri e folga, o firmamento é uma terra por descobrir e debuxa-se vagamente na imaginação, como a montanha azul desse vale de lágrimas.

Alguma vez deixava o rapaz de seguir com o passo a menina, para acompanhá-la com a vista. De braços cruzados sobre a coronha da clavina de caça, fitava os grandes olhos pardos com tal possança d’alma, que mais parecia absorver e entranhar em si o gracioso vulto, do que enlevar-se em sua contemplação.

Acaso, em uma dessas ocasiões, voltou-se de chofre a menina para ver onde ficara o companheiro e deu com ele a fitá-la daquele modo estranho.

image4.webp

– Que me está olhando aí? Nunca me viu? exclamou com surpresa, mas travada sempre da petulância que animava-lhe todos os movimentos.

– Não era para você! respondeu rápido o moço, baixando a cabeça de modo a ocultar o rubor que lhe afogueava o rosto.

Para confirmar o disfarce, armou a clavina e fez pontaria a um cardeal que se embalava no topo de uma palmeira.

– Miguel!...

Esta súbita exclamação rompeu dos lábios da menina, trêmula de susto, a cobrir com as mãos pequeninas as conchinhas das orelhas para não ouvir o ribombo do tiro.

Riu-se o rapaz e abaixou a arma:

– Dengosa!

– Deixe! replicou ela com um amuo.

E deitou de novo a correr, já esquecida do susto, espanejando-se com a mesma alegria, que não se estancava nunca, e alguma vez represa, borbulhava depois com força maior.

De repente parou; imóvel, quase estática, uma lividez mortal jaspeou-lhe as feições, enquanto os olhos se pasmavam em um ponto além.

À orla do mato assomara o vulto de um homem de grande estatura e vigorosa compleição, vestido com uma camisola de baeta preta, que lhe caía sobre as calças de algodão riscado. Apertava-lhe a cintura rija e larga faixa do couro mosqueado do cascavel, onde via-se atravessada a longa faca de ponta com bainha de sola e cabo de osso grosseiramente lavrado.

Em uma das bandoleiras trazia o polvarinho e munição; na outra suspendia um bacamarte, cuja boca negra e sinistra aparecia-lhe na altura do joelho esquerdo, como a face de um dragão que lhe servisse de rafeiro.

As mangas da camisa, tinha-as enroladas até o cotovelo, bem como a parte inferior das calças que arregaçava cerca de um palmo. Usava de alpargatas de couro cru e chapéu mineiro afunilado, cuja aba larga e abatida ocultava-lhe grande parte da fisionomia.

image5.webp

Vinha ele em direção oblíqua ao caminho dos dois jovens, e mal avistou a menina, logo desviou-se do rumo que levava no intuito de evitá-la; mas achando-se por isso fronteiro com Miguel, escapou-lhe o gesto de contrariedade e tomou o partido de parar à espera que os outros se fossem, deixando-lhe passagem livre.

De seu lado estremecera o rapaz ao dar com os olhos no homem da camisola, e tal foi a comoção produzida pelo encontro, que derramou-lhe no semblante a expressão de um asco misto de horror, arrancando-lhe involuntariamente dos lábios esta exclamação:

– Jão Fera!...

Não se abalou o mal encarado sujeito; e Miguel, corrido do primeiro assomo de terror, que lhe embotava os brios de valente e galhardo, reagia com uma travessura de rapaz.

Levou ao rosto a espingarda fingindo armá-la, e apontou para o outro.

– Atire! disse aquele com a voz arrastada e indolente.

E promovendo um passo, apresentou com desgarro o peito à mira da espingarda de Miguel, que já arrependido do gracejo, abaixava a arma.

– Pois olhe! tornou o homem da camisola com a mesma voz de arrasto: fazia um bem a mim... e a outros!

– Por que, Jão?

Fora da menina esta pergunta. Colocada além de Miguel não vira a menção do tiro, feita de brinquedo por este, e só voltou-se e compreendeu o que passara, ao ouvir as últimas palavras.

– Esta vida me cansa! respondeu Jão com arquejo.

– Estás com saudade da forca? retorquiu Miguel com chasco de desprezo.

Ouviu-se um fungar, como o das narinas da onça quando bufa, e arrepia ao mais bravo caçador, que sente lhe estar ela tomando faro ao sangue tépido. De um pulo achou-se o facínora a rosto com o rapaz, que armara intrepidamente a espingarda, preparado a morrer com denodo.

II

Na tronqueira

Atalhou a menina o ímpeto a Jão, arrojando-se-lhe em frente, e cobrindo com o talhe delgado o corpo de Miguel. Seu olhar cintilante trespassou o olhar fero do capanga como a lâmina de um estilete cravando uma couraça.

– Vai embora! disse ela com império; e a voz parecia ranger-lhe nos lábios pálidos.

Foi a pupila inflamada e sanguinária do assassino a que abateu-se.

Recolhendo o passo, quedou-se um instante perplexo, absorto por uma luta que se renhia dentro, procela a subverter o pélago insondável dessa consciência.

Rompeu-lhe do seio uma sublevação contra o poder misterioso e incompreensível, que lhe agrilhoava com um fio de cabelo as pujanças terríveis do coração, até aí indomável e sedento como a sanha do tigre.

Levantou os olhos carregados de cólera.

– Já! impôs-lhe a menina, que pressentira a reação, e como da primeira vez, a retalhava com o gume do seu olhar.

Ainda hesitou o facínora; mas afinal, vencido por ignoto poder, curvou a cabeça, e de um arranco visível afastou-se vagarosamente com um passo tão pesado que lhe custava a arrancar do chão a palma do pé. Duas ou três vezes, antes de encobrir-se na alta capoeira, voltou a cabeça; mas encontrava os olhos cintilantes da menina; e, apesar do grande esforço, vergava ante a inflexível repulsa.

– Foi-se! disse Miguel.

O rapaz assistira imóvel à rápida cena, partido entre o pensamento da defesa e a admiração pela coragem da linda companheira, que afrontava-se com o terrível facínora.

Vendo este sumir-se no mato, escapara-lhe dos lábios aquela exclamação de surpresa, e acompanhou-a logo de um gesto que não era de vã ameaça, mas de firme resolução.

– Algum dia nos havemos de encontrar!

– Que lhe fez ele? perguntou a menina a rir.

Em seu lindo semblante já não restavam traços da comoção que nela produzira a cena anterior. Como a onda cristalina, que turva um instante a asa negra da borrasca e logo após reflete a bonança do céu, era seu olhar sereno e meigo.

Ninguém diria que nesse corpo mimoso dormia a alma que se revelara poucos momentos antes e parecia espedaçar o frágil e delicado invólucro; ninfa celeste a romper a argila de sua formosa crisálida.

– Que me fez, Inhá? repetiu Miguel surpreso da pergunta.

– Foi você quem buliu com ele, que ia seu caminho bem descansado.

– Para a tocaia!

– De quem? interrogou a menina assustada.

– Sei lá! Quando o bugre sai da furna, é mau sinal: vem ao faro do sangue como a onça. Não foi debalde que lhe deram o nome que tem. E faz gabo disso!

– Então você cuida que ele anda atrás de alguém?

– Sou capaz de apostar. É uma coisa que toda a gente sabe. Onde se encontra Jão Fera, ou houve morte ou não tarda.

Estremeceu Inhá com um ligeiro arrepio, e volvendo em torno a vista inquieta, aproximou-se do companheiro para falar-lhe em voz submissa.

– Mas eu tenho-o encontrado tantas vezes, aqui perto, quando vou à casa de Zana, e não apareceu nenhuma desgraça.

– É que anda farejando, ou senão deram-lhe no rasto e estão-lhe na cola.

– Coitado! Se o prendem!

– Ora qual. Dançará um bocadinho na corda!

– Você não tem pena?

– De um malvado, Inhá!

– Pois eu tenho!

– Ah! Você fala com o bugre e até manda nele, como se fosse um negro cativo.

– Pois então!

– Mas por que é que este demônio que não faz caso de ninguém, e até mata as crianças, sofre tudo de Inhá, como ainda há pouco? Por que é?

– Não sei, Miguel! disse a menina com ingenuidade.

– Estou vendo que você tem algum patuá, como dizem as pretas da fazenda.

– E tenho mesmo! Olhe! aqui está! exclamou a menina a rir-se, mostrando um bentinho que tirou do seio, onde o trazia com uma cruz, preso a um cordão de ouro.

image6.webp

– Então é encanto; não há dúvida, replicou Miguel sorrindo.

– E eu digo que não.

– Ora, todos sabem!

– Ninguém sabe, nem eu mesma, só Deus; mas eu cuido uma coisa.

– O quê?

– É porque não tenho medo dele.

– Qual!...

– Nenhum; nenhum!

– Mas você ficou mais branca do que uma cera, que eu bem vi.

– De raiva só! respondeu a menina com expressão.

Tinham os dois companheiros chegado ao lugar, onde a vereda que seguiam atravessava um carreador. Perto dali ficava a tronqueira de bater, a qual dava entrada às terras de uma fazenda, cercadas pelo fosso largo e profundo, que serve para resguardar a cultura contra o gado daninho.

Inhá, que de uma corrida alcançara a tronqueira, subiu de salto pelas travessas, como faria se fossem os degraus de uma escada, e sentou-se na última bem concha de si. Levantando então a aldraba de ferro e empurrando com o pé a cancela, começou a balançar-se com um prazer infantil.

Parado em meio do caminho ficara Miguel contemplando-a com uma expressão de contrariedade. Parecia afligir-se de ver sua graciosa companheira fazer-se criança, e trocar pelas afoitezas de um traquinas as cintilantes vivacidades da mocinha faceira.

Sentia ele dentro em si uma ânsia incompreensível, qual tem-na o artista olhando o toro de mármore de que seu cinzel vai criar uma estátua. Mas essa, que lhe vive e palpita n’alma, ainda o mármore não a recebeu, e quem sabe se poderá ele nunca moldá-la como a desenhou a imaginação.

Tal era Miguel ante aquele esboço da mulher que sonhava e, já alguma vez, entrevira em realidade, mas como uma luz efêmera, quase instantânea, bruxuleando entre as cismas de seus passeios solitários pelos campos. Os mesmos ímpetos do artista, cortados pelo desânimo, tinha-os ele nos momentos em que via, como agora, transformar-se de repente a fada gentil de seus sonhos em uma capetinha de mil pecados.

Sua alma refrangia-se, ferida pela decepção; e por isso, desviando a vista da menina, atravessou o carreador e trilhou a vereda que embrenhava-se pela mata fechada, a pequena distância daí.

– Psiu!... Onde vai? perguntou Inhá surpresa.

Miguel parou.

– Já se esqueceu do caminho? continuou ela a rir. É por aqui!

– O meu não! respondeu o rapaz.

E partiu.

Nesse momento soou a distância um agudo assobio, e Inhá viu resvalar entre a folhagem, à orla da mata, um vulto que lhe pareceu Jão Fera.

III

Ela

A embalançar-se na tronqueira, Inhá seguia com os olhos o rapaz que afastava-se.

Miguel tinha razão.