Tão ardilosa era a expressão do rostinho da menina e tão brejeiro seu olhar, que a transfiguravam completamente. Quem assim a visse, julgaria ter diante de si, a chasqueá-lo, o trejeito garoto de um caipirinha.
Para essa ilusão muito concorriam o tipo e o traje da moça.
Era ela de pequena estatura e tão delgada e flexível no talhe, que dobrava-se como o junco da várzea. As formas da graciosa pubescência, que um corpinho justo debuxaria em doce e palpitante relevo, as dissimulava o frouxo corte de uma jaqueta de flanela escarlate com mangas compridas, e desabotoada sobre um camisote liso, cujos largos colarinhos se rebatiam sobre os ombros, à feição dos que usavam então os meninos de escola.
Servia-lhe de toucado um chapéu de palha de coco trançada, sob o qual escondia os lindos cabelos negros cacheados, que às vezes, com os saltos, escapavam da prisão e vinham folgar sobre as espáduas. Calçava grossos coturnos de couro de veado, mas tão altos que mais pareciam botas; e comparando com as de Miguel, se diriam irmãs na forma, a não ser o tamanho, onde aliás afogava-se o pezinho buliçoso.
Ainda assim não estava Inhá contente, pois metiam-lhe inveja o pala e as calças de brim do companheiro; mas sobretudo a clavina de caça que ele trazia ao ombro.
Para tê-la, e carregá-la assim, daria ela naquele momento sem hesitar as soberbas tranças de seus longos cabelos, que lhe estavam metendo figas e zombando das duas pretensões a rapaz.
Se a estreita saia de chita dava a esse vestuário um traço feminino, acusando um contorno harmonioso, por isso mesmo ela em seus momentos de luta com a natureza parecia caprichar em destruir aquele vestígio de seu sexo. Os pulos que soltava, a firmeza de seu passo gentil que ela de propósito fazia rijo, imprimiam com efeito certa aspereza e nervura a seus movimentos sempre encantadores, apesar de tudo.
Os grandes olhos, negros, claros e serenos, como um lago cristalino imerso na sombra, não podiam negar que fossem de mulher: tinham a diáfana profundidade do céu, cheia de enlevos e mistérios.
A boca mimosa e breve, conhecia-se que fora vazada no molde do beijo e do sorriso. Mas quando o brinco iluminava essa fisionomia, e o capricho quebrava-lhe a harmonia das linhas do suave perfil, era cobrir-se com a máscara do rapazinho estouvado, que ela teria sido sem dúvida, se a natureza não lhe trocasse o destino.
Nesse prisma da lindeza de Inhá reflete-se a sua índole. Aquela alma tem facetas como o diamante; iria-se e acende uma cor ou outra, conforme o raio de luz que a fere.
Contradição viva, seu gênio é o ser e o não ser. Busquem nela a graça da moça e encontrarão o estouvamento do menino; porém mal se apercebam da ilusão, que já a imagem da mulher despontará em toda sua esplêndida fascinação. A antítese banal do anjo-demônio torna-se realidade nela, em quem se cambiam no sorriso ou no olhar a serenidade celeste com os fulvos lampejos da paixão, à semelhança do firmamento onde ao radiante matiz da aurora sucedem os fulgores sinistros da procela.
Cheia de carícias e gentilezas no princípio do passeio, fechara de repente a flor de sua graça e envolvera-se naqueles ares zombeteiros, que pungiam como espinhos o coração de Miguel. Poucos momentos antes, estremecera de susto vendo armar-se uma espingarda para atirar a um passarinho; e logo após arrostara sem hesitar a sanha de um assassino feroz, cujo senho incutia pavor aos mais intrépidos.
E assim é tudo nela; de contraste em contraste, mudando a cada instante, sua existência tem a constância da volubilidade. Na vaga flutuação dessa alma, como no seio da onda, se desenha o mundo que a cerca; a sombra apaga a luz; uma forma desvanece a outra; ela é a imagem de tudo, menos de si própria.
Teria o rapaz dado vinte passos quando a menina o chamou, mas com ar de remoque:
– Escute!... Nhô Miguel, ora escute!
Como não a atendesse o companheiro, que se fingia ou estava deveras zangado, Inhá saltou da tronqueira, e alcançando o rebelde de uma corrida, tomou-lhe o caminho.
– Onde vai?
– Caçar.
– Depois; agora vamos à fazenda.
– Eu não! disse Miguel prontamente.
– Que pirraça é esta?
– Não tenho que fazer lá.
– Mas tenho eu.
– Todos os dias? perguntou Miguel fitando nela um olhar perscrutador.
– Se eu gosto!
Essa ingênua confissão, fê-la a menina com um gesto encantador, rasgando os grandes olhos puros e brandos, como se abrisse os seios d’alma ao pensamento suspeitoso do companheiro. Foi o olhar deste que abaixou-se encadeado e cego com a reverberação; e o rubor queimou-lhe as faces, enquanto a menina banhava-se em um sorriso de canduras.
– Pois vá só! replicou o rapaz virando.
– Para Linda agastar-se comigo?
– Não tenha susto.
– Você é um ingrato, Nhô Miguel: não paga o bem que lhe querem.
– Deixe-se desses brinquedos, Inhá. É por isso mesmo que eu não vou mais à fazenda e também para... não ver certas coisas.
– O quê?... Mecê, diga; por favor! acudiu a menina para bulir com o rapaz.
– Cuida que eu não reparo como Afonso brinca tanto com mecê?
– Mecê, hein?...
– Que me importa! Hei de dizer mecê.
– Está disfarçando! Não quer que se fale dos segredinhos com o Afonso?
– E faz mal isso? perguntou a menina com sincera surpresa.
Aumentou-se o vexame de Miguel, que mordia os beiços com o desejo de soltar uma palavra, e se continha pelo receio do desagrado da menina.
– Mas não vê que Afonso gosta de você.
– Estimo bem! disse Inhá dando uma pirueta.
– Então?...
– Acabe!
– Então Inhá também gosta dele?
– Também!
– Ah!
– Tanto como de você, Nhô Miguel!
– Muito obrigado! retorquiu Miguel com um modo seco.
– Por isso agora ficou aí todo amuado?
– Até logo; já me vou.
– Não vai, que eu não quero! exclamou a menina com despeito, e impedindo-lhe o passo.
– Então voltemos para a casa.
Inhá aproximou-se do companheiro e o envolveu de um olhar carinhoso.
– Olhe! se você não vier, Linda fica triste, coitadinha, tão bonita, com aqueles olhos tão ternos, que ela tem, de pomba-rola; e aquele rostinho de redoma, que é mesmo uma santa quando se ri no céu. Venha, eu lhe peço, meu bom Miguel.
Fascinado estava o Miguel, mas não pela imagem que lhe descrevia Inhá, senão pelo original que tinha diante de si, e o embebia na meiguice de seu olhar e na ternura de seu carinho.
– Mas eu não gosto dela, balbuciou o moço.
Pois não fale mais comigo, disse a menina arrufada.
– Escute, Inhá!
– Vem?
O rapaz hesitava.
– Você promete?...
– Não prometo nada.
– Se Afonso quiser brincar com você...
– Eu hei de brincar com ele, muito, muito, muito!
Cada um destes advérbios, a menina o acentuou batendo com o tacão no chão.
– Então não vou!
– Não venha! Quem lhe pede?
Caminhou ela direito à tronqueira; e entrou na fazenda.
IV
Monjolo
Cerca de uma légua abaixo da confluência do Atibaia com o Piracicaba, e à margem deste último rio, estava situada a fazenda das Palmas.
Ficava no seio de uma bela floresta virgem, porventura a mais vasta e frondosa, das que então contava a província de São Paulo, e foram convertidas a ferro e fogo em campos de cultura. Daquela que borda as margens do Piracicaba, e vai morrer nos campos de Ipu, ainda restam grandes matas, cortadas de roças e cafezais. Mas dificilmente se encontram já aqueles gigantes da selva brasileira, cujos troncos enormes deram as grandes canoas, que serviram à exploração de Mato Grosso. Daí partiam pelo caminho d’água as expedições que os arrojados paulistas levavam às regiões desconhecidas do Cuiabá, descortinando o deserto, e rasgando as entranhas da terra virgem, para arrancar-lhe as fezes, que o mundo chama ouro e comunga como a verdadeira hóstia.
No ano de 1846 era de recente fundação a fazenda das Palmas, que Luís Galvão, seu proprietário, recebera de herança paterna, ainda nas condições de simples situação, com um velho casebre de caipira, dois cafezais e alguma pouca roça.
Tinha Luís Galvão o gênio empreendedor e gosto para a lavoura; casando com a filha de um capitalista de Campinas, que lhe trouxe de dote algumas dezenas de contos de réis, além do crédito, pôde ele, dando alas à sua atividade, fundar uma importante fazenda, que a muitos respeitos servia de norma e escola ao agricultor brasileiro.
Ao passo que ia se adiantando a lavra das terras, erguia-se na chapada fronteira ao rio uma bela casa de morada em dois lances abarracados, com um pequeno mirante no centro, sobreposto à larga portada; esta abria para o patamar, ladrilhado, de uma pequena escada de seis degraus, que descia ao terreiro.
Formava o edifício uma face da vasta quadra, onde se fora levantado sucessivamente casas para o administrador e feitores, senzalas para os escravos, o engenho de cana, a fábrica do café, tulhas de feijão e milho, além de outros acessórios do grande estabelecimento rural, que veio a tornar-se depois a fazenda das Palmas.
Do terreiro da casa partia o caminho principal da fazenda, que se estendia pelo espigão da colina, e bifurcava-se de espaço a espaço para serventia das várias jeiras de lavoura. O ramo principal, fugindo os alagados e descrevendo uma grande curva, ia entroncar-se, a meia légua de Santa Bárbara, na estrada geral da Constituição a Campinas.
No ponto em que esse carreador transpunha o valado principal da fazenda, aí fechando também por uma tronqueira, um cavaleiro embuçado, oculto no carrasco, levou ambas as mãos à boca e imitou o canto do curiau, soltando um apito longo e cheio; o mesmo que ouvira Inhá.
Imediatamente o próximo canavial ondulou, e surdiu na ourela um negro moço, com o corpo nu até a cintura e a camisa atada aos quadris à guisa de tanga. Os lanhos das faces indicavam a casta monjola do africano, em cujo rosto se desenhava a astúcia do gambá e alguma coisa do focinho deste animal.
– Quem és tu? perguntou o cavaleiro vendo o negro dirigir-se a ele.
– Monjolo, meu branco. Faustino mandou dizer a senhor que tudo se arranjou como ele prometeu.
– Mas por que não veio ele mesmo?
– Pois o branco não vê que ele está lá em casa ocupado!
– Pedaço dum tratante!
– Gente desconfia; então essa cambada de pajens e crioulos, que é mesmo da pele do cão.
– O patife quer trapacear!
– Branco está de orelha em pé; pois olha, Monjolo é negro de bem; quando ele dá sua palavra e aperta dedo mindinho, está acabado, é como rabo de macaco: quebra, mas não solta galho, por nada desta vida, nem que arrebente.
– Anda lá, bruto, desembucha duma vez o recado, que não estou para aturar-te.
– Ixe!... disse o preto fazendo um momo de pouco caso.
– Falas ou não!
– Que é que o senhor quer saber?
– O diabo sempre vai hoje à vila?
– Vai, meu branco; o diabo vai, mas não é capaz de cair no inferno, não!
– Alguém o há de empurrar. A que horas sai ele da fazenda? É mesmo de manhã?
– Não tarda. Cavalo já está selado; capanga só vai um, mofino como o quê! Os outros, Faustino arranjou, como branco sabe.
– Então só leva duas pessoas?
– Duas só, sim senhor. Paje e capanga.
– Está bom; toma lá, para o pito, disse o cavaleiro atirando-lhe um pataco de prata. Agora vê se vais dar com a língua nos dentes.
– Eh!... Monjolo mesmo!... Branco não conhece este negrinho da carepa, não!
Já não o ouviu o embuçado que, dando rédeas ao animal, afastou-se na direção da estrada geral.
Era acidentado o terreno, que atravessava esse caminho, cortado no maciço de uma mata virgem, tão exuberante, que todos os anos fechava com os renovos da vegetação a picada aberta no inverno.
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