De Sorocaba todo inteiro! É a primeira vez que botei-me cá para estas bandas.

Isto, disse-o Barroso com segurança e desplante.

– E por que tem gana ao homem?

– Ora essa! Fez-me uma; e jurei que havia de pagar com usura.

– História de mulher? perguntou o capanga vibrando-lhe um olhar ardente.

– Quem se embaraça agora com saias? Não sou nenhum balão! Quer saber o que me fez o diabo? Teve o atrevimento de dizer em certa parte que, se lhe passasse a tronqueira da fazenda, mandava-me amarrar ao mourão por seus negros e surrar-me com um calabrote!

– Ah! Ele disse isto?

– Com certeza; mas daqui há pouco vamos saldar as contas. Ele vem aí; não tarda.

– Mas que escândalo teve o homem do senhor, para dizer isso!

– Essa maldita política! Se eu guerreei a chapa dele; eu cá sou do governo!... Mas escute. Arranjou-me tudo; o patife só traz um capanga e o pajem; por conseguinte desta vez não tem desculpa.

O capanga levantou os ombros com ar de indiferença.

– Já sei; vá andando.

– Posso ficar aqui mesmo.

– Fique, mas já lhe aviso. Quando eu vejo vermelho, não conheço quem está perto de mim.

– Safa!... Neste caso vou por aí afora, até a venda do Chico Tinguá. Lá o espero, homem; e com o resto da chelpa. Duas onças, das suçuaranas, bem amarelinhas, ou três canários, à vontade do amigo, contanto que desta feita acabe-se o negócio. Já o diabo podia ter comido muita terra, se cá o camarada fosse mais decidido.

Às últimas palavras de Barroso o capanga abaixou o olhar, e um repentino enleio atou aquela organização robusta e audaz, que difundia em torno de si a plenitude da sua pujança. Alguma fibra vital fora dolorosamente pungida, que o confrangia, amortecendo o natural orgulho e arrojo do caráter.

– Só tenho uma palavra, sr. Barroso! disse afinal com a voz firme e grave.

– Mas está custando a cumpri-la; confesse-se!... Franziu ainda mais o sobrolho a Jão Fera, que mordeu os beiços a tirar sangue. Acabava de estrangular a jura, que a destra já se preparava para cravar no corpo de quem ousava duvidar de sua palavra.

– Se da primeira vez em que o senhor me falou na venda do Chico, tivesse logo dito quem era o homem; eu certo que não aceitava o ajuste, nem recebia os seus vinte patacões para tomar o empenho que tomei.

– Por que então?

– Basta que eu saiba. Só depois é que me disse, quando eu já tinha gasto seu dinheiro. Esperava ganhar para lhe restituir; e por isso ia deixando a coisa para mais tarde, pois o senhor há de lembrar-se, que minha promessa foi dar conta do homem até São João que vem cair lá para a outra semana. Sou senhor de minha vontade, fazer hoje ou amanhã, quando me parecer, desde que naquele dia minha palavra estiver cumprida. Aí está a razão...

– Quem duvida que o camarada é um homem honrado? Então eu não sei com quem lido?

– Deixe-me acabar. Aí está a razão de não ter eu dado conta ainda da sua obra. Queria ver se me vinha alguma prata para livrar-me deste empenho. O senhor não vê diferença em mim?

– Alguma, para falar a verdade.

– Pareço um tocador de tropa. Vendi o que tinha, e pouco era; mas não ajuntei senão estes magros cobres, que trago aqui na burjaca, veja. Quer recebê-los, e soltar a minha palavra, empenhando eu a minha vida para pagamento do resto?

– Isso nunca! O trato está em pé!

Fechou-se o capanga, assumindo outra vez a calma e possança de si mesmo:

– Estou ciente. O senhor cobra a sua dívida; eu pago-lhe na moeda que tenho, nesta, disse batendo na bainha da faca. Vá descansado; hoje ficamos quites.

– Esse falar agora me agrada mais; e até, olhe lá, por cima do prometido, sempre a gente há de escorregar uma molhadura, se a obra for bem-feita.

– Dispenso, retorquiu-lhe com uma desdenhosa concisão.

– Ande lá. Então na venda do Chico? perguntou Barroso com o pé no estribo.

– Já disse.

– E logo que despachar o diabo?

– Sim!

– Boa mão, camarada.

Ganhando a sela, seguiu Barroso o trilho escarvado da azinhaga, e alcançada a planície, afastou-se a galope do sítio mal-assombrado.

Entanto, o capanga ouvindo o tropel do animal a perder-se na distância, murmurava consigo:

– Aquela cisma que eu tive há pouco!... Se não fosse o urutu!... No cabo não era ele, sem falar que estou lhe devendo...

E acrescentou:

– É preciso acabar com isto! Há de ser o que Deus quiser.

Suspendendo o corpo do urutu à ponta de um galho, ia tirar-lhe a pele, para gastar o tempo da espera, quando alguma coisa suspeita fê-lo erguer de pronto a cabeça e aplicar as ouças.

Ressoava ainda muito longe o oco estrupido de animais passando uma ponte de madeira.

VII

O marmanjo

No terreiro da fazenda das Palmas, junto à escada da casa de morada, os animais de montaria mordiam os freios de prata, raspando o chão com a ponta do casco.

Tinha-os pelas rédeas um mulato de libré cor de pinhão, avivada de preto e escarlate, com botas envernizadas de canhão amarelo, e chapéu de oleado a meia copa. Recostado ao socalco do patamar com ares de capadócio, o pajem fazia sinais para uma janela, onde aparecia amiúde a trunfa riçada de uma crioula.

Vinha chegando-se com a proverbial pachorra paulistana um camarada, que mastigava o último bocado do almoço, e preparava o cigarro de palha. Aceso o pito e tomada a primeira fumaça, passou revista primeiro nos arreios do baio e da rosilha, depois nos cascos; e não achando coisa de maior, foi contudo, para mostrar a sua valia, aqui apertando um loro, ali afrouxando uma cilha e repuxando uma correia da cabeça.

– Esta corja de pajens, dizia a rir para o mulato em forma de cumprimento, só serve de emporcalhar a casa. Ficam velhos e não aprendem.

– Corja é súcia, Mandu.