O solo aí, como em toda a cercania, cobre-se de uma crosta da argila roxa, afamada na província por sua espantosa fertilidade. Em verdade, quando se deixa Campinas, e a pata dos animais começa a triturar essa terra ferruginosa, tão fácil de converter-se em pó sutilíssimo como em profundo tremedal, a natureza muda de aspecto; arreia-se de galas, e aos campos tão monótonos, embora célebres, de Piratininga, sucedem os bosques frondosos de Piracicaba.
Não obstante ser o caminho em toda a sua extensão, desde a extrema da fazenda, coberto e sombrio, havia contudo um lugar, cujo torvo aspecto correspondia ao terror supersticioso que inspirava e à sinistra reputação que adquirira.
Pouco além da interseção de outra picada, coleava o caminho algum tempo entre marachões cobertos de arvoredo, e por fim metendo-se pela garganta de um rochedo escabroso, descia em zigue-zagues para remontar a oposta rampa de profunda grota. Como se não bastasse essa conformação cavernosa do terreno, a vegetação nutrida pelo humo vigoroso que as enxurradas depositavam nesses barrocais, exuberava sua maior pujança, e frondeava as árvores seculares, embastindo as sebes de verdura que vestiam os grossos troncos e lastravam pelos penhascos.
Da gente da vizinhança era conhecido aquele lugar por Ave-Maria, talvez de não passar alguém ali, sem romper-lhe dos lábios trêmulos aquela imprecação de susto. Nem sempre fora com eficácia invocada a divina padroeira, pois a tradição conservava o nome das vítimas, que aí haviam sucumbido.
Nenhum sítio em verdade se encontrara tão azado para uma emboscada. Ali oculto, um sicário conseguiria a salvo dar conta de uma comitiva, sem que os companheiros se pudessem mutuamente defender, nem mesmo aperceber-se da sorte que os aguardava, tal era a estreiteza do sinuoso desfiladeiro.
Dizia a gente do lugar que ouvia-se na azinhaga funesta um incessante gemido de agonia; e não faltava quem o atribuísse às almas penadas dos infelizes que aí se finavam insepultos e devorados pelos urubus.
V
A tocaia
Ao sumir-se na espessura, Jão Fera voltou o rosto e por entre a basta ramagem esteve a contemplar o vulto esbelto da menina.
Ao passo que se engolfava nessa fascinação, ia-se operando a transfiguração completa de sua fisionomia.
O perfil adunco e chanfrado, que revestia a beleza feroz e sinistra do abutre, embotou a rispidez, saturando-se de uma bruteza alvar. Intumesceram-se as faces, pouco antes crispadas pela cerração habitual das maxilas, e tomou a tez um tom fouveiro, indício da ebulição do sangue a ferver-lhe em bolhas no coração.
As fulvas papilas que se encovavam pelas têmporas, como tigres nas furnas, saltaram das órbitas, dilatadas por um fluido espesso que tinha a fosforescência felina. De ordinário avincava-lhe a fronte uma ruga saliente, que depois de fender-lhe o sobrolho, partia-se em duas plicas profundas como gilvazes, a lhe cortarem o rosto. A temulência da paixão injetando os músculos e insuflando as narinas, apagou todos aqueles sulcos rasgados pela sanha; e até os lábios sempre cosidos à feição de uma cicatriz, agora túrgidos arregaçavam, mostrando pela estreita comissura os dentes agudos.
Assim o aspecto do homem ralado por uma sede intensa ou calcinado pela chama violenta que ardia interiormente, afinal tomara a fisionomia da sensualidade brutal, onde como na brama do tigre, ressumbrava a ferocidade do amor.
Oculto no mato, foi o capanga, qual ao arrasto de uma cadeia, seguindo maquinalmente Inhá, através do campo. Muitas vezes, na absorção que ia, mostrou-se a descoberto, não o tendo percebido os dois companheiros, por estarem com a atenção presa na conversa.
Quando, porém, a menina sentou-se na tronqueira, voltada para o lado donde viera, aconteceu de vê-lo na ocasião de atravessar a nesga de campina, que separava os dois bosques. Turbado com aquele acidente, irritado por se ter mostrado naquele instante, Jão Fera rompeu o encanto da fascinação que o atava e embrenhou-se na floresta.
Era justamente a ponto, que ao longe estrugira o assobio do curiau, repercutindo pelos recessos da mata e algares das barrancas.
Estugando o passo, chegou o capanga à brenha cerrada, que ensombrava a azinhaga da Ave-Maria. Ali encostado ao tronco de uma árvore, com os braços cruzados e a cabeça fincada ao peito, submergiu-se nas profundezas daquela alma, que devia ter cavernas tremendas e insondáveis abismos.
– Amanhã quando souber, pensará que fui eu!...
Murmurando estas palavras, uma expressão de angústia derramou-se pelo semblante do facínora, que se confrangeu, como se uma tenaz lhe estivesse a triturar o coração. Que medonha era a dor nessa natureza sanguinária, que se apascentava de cruezas e homicídios!... O eu humano é como sua besta: manso, quando frugal; rábido, se o fazem carnívoro; por isso em casa sentimento há o trasunto da história de nossa alma.
Naquele momento Jão Fera sofria a suma de todos os sofrimentos que derramara em seu caminho; de todas as ânsias, que sua mão levantara. Tudo nesse homem, a dor como a alegria, a raiva como o amor, a gula como a embriaguez, revestia a natureza da fera; tinha fauce para devorar, e garras que lhe dilaceravam o chão da alma, como a pata da suçuarana escarva a terra no arremessar do pulo.
Durou rápido trato essa agonia moral; e não podia prolongar-se que o rijo coração, vaso frágil para contê-la, embora acrisolado ao fogo das paixões tempestuosas, ia estalar.
Abalou-se o corpo vigoroso com um forte calafrio, que sacudiu-lhe a terrível obsessão; e o facínora surgiu outra vez audaz e ameaçador. Rebatendo o chapéu com um revés de mão, descobriu a fronte rija e alta, que se escalvava entre uma floresta de cabelos negros. Outra vez se descarnou a sua fisionomia com a expressão dura, ríspida e incisiva, que lhe dava a aparência de um perfil talhado em gume de aço.
– É sina! proferiu no tom implacável do fanatismo.
Com pouco reboou das barrocas da azinhaga o tropel de um cavalo. Jão Fera acostumado a distinguir nos rumores da mata as várias notas que formavam a surdina da floresta, inclinou o ouvido à escuta. Não se enganara; o animal vinha naquela direção e aproximava-se rapidamente.

Galgando então pelos socalcos do imbê, que descia dos galhos de um prócero jequitibá, alcançou o tope no rochedo, donde se descortinava entre o rendado das folhas uma volta do caminho.
Não tardou que apontasse ali, para sumir-se logo na curva da estrada, um cavaleiro.
Era o mesmo embuçado que falava pouco antes com Monjolo. Orçava pelos cinquenta anos; barroso da cara que lhe cobria uma barba ruiva e áspera como as cerdas da capivara; de mediana estatura e excessivamente magro; vinha trajado ao uso da terra: chapéu mineiro de feltro pardo, sob o qual via-se o lenço de Alcobaça que lhe servia de rebuço; poncho de pano azul forrado de baetilha, com a gola de belbute levantada; botas de bezerro armadas de chilenas de prata.
Os lábios do capanga, onde flutuava um sorriso de desprezo, contraíram-se logo, e arrojou-se o corpo à frente para não desprender a vista assanhada do cavaleiro, que sumira-se na curva do caminho. Desceu rápido ao rés da azinhaga, por onde breve meteu-se o desconhecido.
Mal que assomou este no alto da rampa, a pupila injetada do capanga cravou-se-lhe no semblante e o atraía como a garra do abutre; a par, os dedos da mão direita afagavam com certa volúpia feroce o longo cabo da faca, passada à cinta, e já a meio fora da bainha.
Não parecia o embuçado muito senhor de si e tranquilo de ânimo; pois lançava a um e outro lado olhos inquietos e investigadores, à feição de quem temia e perscrutava algum perigo oculto naquelas brenhas que o cercavam. Alguma vez hesitou, como incerto da resolução que devia tomar; olhou para trás, ou enfrestou pela vereda que serpejava diante dele vistas impacientes. Dir-se-ia que vacilava, entre continuar e retroceder; ou quiçá julgava-se transviado, e procurava afirmar-se no caminho para ele desconhecido.
De chofre empinou-se o cavalo, arremessando o homem sobre a escarpa da barranca, donde rolou ao trilho, como um corpo inerte.
VI
O empenho
O capanga abatera um olhar de nojo para o cavaleiro que lhe veio rolar aos pés.
A faca brandida com força vibrava ainda no tronco do jequitibá, onde cravara a cabeça de um urutu, que estorcia-se de fúria e dor.
Fora a negra serpente que espantara o animal, quando enristou-se como uma lança, fincando a cauda e chofrando o bote. Advertido pelo faro, antes de ver altear-se o negro colo, o cavalo rodara sobre os pés; e a cobra ameaçada pelos cascos elou-se ao tronco, onde a alcançara a mão certeira de Jão Fera, que já tinha apunhado a faca.
Recobrando-se do atordoamento da queda, ergueu-se o desconhecido, a apalpar o corpo um tanto pisado e a sacudir a roupa.
– Apre! resmungou ele. Escapei de boa.
O capanga lançou-lhe um sorriso esguardo:
– Desta vez escapou, disse ele com surda entonação.
Dirigiu-se ao tronco e arrancou a faca, depois de esmagar a cabeça da urutu.
– Que diabo é isso? perguntou o embuçado.
– Não vê? retorquiu Jão limpando nas ramas a folha da faca.
– Agora penetro porque o diabo do ruço pinchou-me!
Cuidando então do cavalo que podia fugir-lhe, o desconhecido pôs-lhe cerco, e com algum trabalho conseguiu colher as rédeas; feito o que tornou ao lugar, onde havia deixado o capanga.
Este o esperava impassível, mas um tanto absorto.
– Como se chama o senhor? perguntou bruscamente ao cavaleiro.
– Oh, homem, lembrou-se disso agora! tornou o outro um tanto ressabiado.
– Quando o senhor me procurou há tempos para seu negócio, não me disse como se chamava.
– Porque não era preciso.
– Nem ontem quando me avisou para estar aqui; prosseguiu o capanga sem interromper-se. Mas agora há de dizer: quero saber com quem trato.
– Para quê? Desde que a gente paga... Ou desconfia o senhor de mim?
– Ninguém me logra, disse Jão com um sorriso mostrando a faca. Tenho este fiador. O ponto é outro; só avanço com quem conheço.
– Pois não seja essa a dúvida. Com os diabos; chamo-me Barroso!

– Nunca morou aqui em Santa Bárbara?
Com essa interrogação ferrou o capanga olhar perscrutador no semblante do cavalheiro.
– Eu?... Que esperança!...
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