To Be Or Not To Be

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To Be or Not to Be
Machado de Assis


Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1876




Fonte: Domínio Público






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I



André Soares contava vinte e sete anos, não era magro nem gordo, alto nem baixo; na alma, como no corpo, conservava uma escassa e honrada mediania. Era um desses homens que não aumentam a humanidade quando nascem nem a diminuem quando morrem.

Poupando ao leitor a narração dos acontecimentos principais da vida de André Soares, limito-me a dizer que no dia 18 de março de 1871 — justamente no dia em que rebentava em Paris a revolução da Comuna — achava-se o nosso herói no Rio de Janeiro na situação que passo a descrever.

Gozava de um emprego que lhe dava cento e vinte mil-réis por mês e estava nele havia já cinco anos, tendo o natural desejo de subir a outro que lhe desse pelo menos duzentos mil-réis. Não recusaria se lhe oferecessem trezentos; com quatrocentos, é de crer que não se zangasse, e atrevo-me a dizer que chamaria todas as bênçãos do céu sobre quem lhe desse quinhentos.

A verdade, porém, é que apenas tinha cento e vinte, e que apesar de não ter família e morar numa hospedaria barata, clamava André Soares contra o destino ou pedia a todos os santos do céu que lhe aumentassem o ordenado.

Dois meses antes do dia em que esta narração começa, metera André Soares alguns empenhos para obter um lugar que lhe dava justamente duzentos mil-réis, e de onde poderia subir mais facilmente a maiores alturas.

André Soares tinha o sestro de acreditar que os seus sonhos eram realidades, bem como o de ver catástrofes onde muita vez há apenas ligeiros infortúnios e às vezes nem isso. Apenas metera empenho para o emprego entrou a fazer mil castelos no ar e a fantasiar coisas espantosas. Não lhe chegava decerto o dinheiro, os míseros duzentos mil-réis, numa cidade em que tudo (diz o príncipe Aléxis numa carta que acabo de ler) é mais caro do que nos Estados Unidos e na Havana. Mas, a um sonhador como André Soares, nada é obstáculo. Ele sonhava com passeios de carro, teatros, bons charutos, luvas de pelica, além das despesas usuais, e para tanto não é de crer que dessem os duzentos mil-réis. Sonhava, e bastava o sonho para o fazer feliz.

Já daqui pode o leitor avaliar o pasmo e a dor de André Soares quando recebeu uma carta do personagem que lhe servira de empenho, carta de que basta citar este último trecho:
   

...Assim, pois, meu caro sr. André Soares, sinto não ter podido servi-lo como desejava e devia. Tenha paciência, e mais tarde...

    

Nem André Soares nem nenhuma outra pessoa leu nunca o resto da carta, porque ao chegar à última palavra acima transcrita, o pretendente rasgou a epístola em mil pedaços, bateu com as mãos fechadas na testa, rasgou a camisa e atirou-se desesperado a uma cadeira.

Não se sabe com certeza que tempo gastou André Soares na posição em que o deixei no período anterior; o que se sabe é que, depois de estar calado e pasmado, monologou do seguinte modo:

— Haverá no mundo maior desgraça do que a minha? Há empregos graúdos para tanta gente, só não há para um mísero que tem lutado com a sorte durante longos anos? Posso eu viver mais sobre a terra? Há esperanças de me levantar desta abjeção?

— Não, não há, continuou ele. Estou decidido; acabemos de uma vez com esta vida de tribulações; não quero arrastar tamanha miséria até aos 80 anos.

E dizendo isto, o nosso André Soares vestiu camisa nova, meteu-se num paletó, pôs o chapéu na cabeça e meditou no gênero de morte que devia escolher.

Escolheu afogar-se.

Tinha um cartão de barca na algibeira; dirigiu-se para a ponte das barcas de Niterói. Mais de um olhou para ele; ninguém podia ter idéia de que ali estava um homem em véspera de morrer.

Aproximou-se a barca, entraram os passageiros, e com eles André Soares, que foi sentar- se primeiro num dos bancos interiores, à espera que a barca chegasse ao meio da baía; então procuraria a popa ou a proa e atirar-se-ia ao mar.

A barca seguiu caminho; os passageiros conhecidos conversavam, os desconhecidos aborreciam-se, e neste número incluo André Soares (compreende-se) e uma moça que lhe ficava a dois palmos de distância no mesmo banco.

Não se podia ver se era bonita, porque trazia um espesso véu sobre o rosto; mas o que se podia sentir era um olhar literalmente de fogo. Mais de um passageiro voltava de quando em quando o rosto para a moca de véu, que aliás olhava para o chão, para o mar, para o teto e nunca para ninguém.

Trajava essa desconhecida um vestido de seda escura que lhe ficava muito elegante no corpo. Tinha luvas de pelica de cor igual à do vestido, e da mesma cor calçava uma botina, aliás duas, que lhe ficavam a matar.

Esta última descoberta não a fez nenhum passageiro, mas André Soares que, estando com os olhos pregados no chão a rememorar os seus infortúnios, deu com os olhos num dos pés da velada desconhecida.

Estremeceu.

André Soares resistia a tudo neste mundo, a uns olhos brilhantes, a um rosto adorável, a uma cintura de anel; não resistia a um pé elegante. Dizem até as crônicas que entre alguns versos que outrora compusera como quase todos os rapazes, o que não quer dizer que fosse poeta, figurava esta quadrinha conceituosa e denunciadora dos seus instintos filópedes (relevem-me o neologismo) :

Se queres dar-me esperança,

Se queres que eu tenha fé,

Mostra-me, por caridade,

O teu pequenino pé.

Com a desconhecida da barca niteroiense não era preciso recitar esta quadra suplicante; ela estendia o pé com ares de quem queria que André Soares lho visse, e falo assim porque no fim de dez minutos deixou a moça de olhar para o teto, para o mar, para o chão, e entrou a olhar unicamente para ele.

André Soares estava na ante-sala da morte; nem por isso deixou de sustentar o olhar da moça, dividindo a sua atenção entre o seu rosto e o seu pé. Refletia ele que ir para a sepultura com uma doce recordação da vida não era absolutamente prejudicial à alma. Aqueles minutos em que ainda respirava, aproveitava-os ele na contemplação da moça, e tanto os aproveitou que quando deu acordo de si chegara a barca a S. Domingos.

André Soares fez um gesto de despeito; mas não teve tempo de resolver alguma coisa, porque a moça levantou-se para sair lançando-lhe um último olhar, e ele maquinalmente deixou-se ir atrás dela e saiu da barca.

Estava adiado o suicídio, pelo menos por algumas horas, porque o nosso André Soares quando reparou que ainda se não tinha matado, murmurou estas palavras consigo:

— Na volta.

E foi seguindo atrás da bela desconhecida. Bela é talvez pouco; André Soares achou-a fascinadora, quando na ponte uma rajada de vento levantou um pouco o véu da moça. Ao mesmo tempo, tendo deixado ir a moça adiante, André Soares pôde apreciar os pezinhos e a graça com que ela os movia — nem tão apressada como as francesas, nem tão lenta como as nossas patrícias, mas um meio-termo que permitia ser acompanhada sem desconfiança dos estranhos.

No fim de duzentos passos, André Soares estava namorado quase de todo, sobretudo porque a desconhecida duas ou três vezes voltara o rosto e passara ao infeliz um novo cabo de reboque. Cabo de reboque é uma metáfora que o leitor compreenderá bem e a leitora ainda melhor. Em duas palavras, quando a desconhecida entrou em uma casa, André Soares estava definitivamente resolvido a tentar a aventura, e a adiar, para tempos melhores, o suicídio.


II


Logo nesse dia, voltou o nosso herói para casa tão contente como se houvera tirado a sorte grande. O mar contava um hóspede menos; mas a fortuna coroara mais um de seus escolhidos.

André estava fora de si; amava, não era mal recebido o seu amor, cujo objeto, de mais a mais, era um anjo, um nume, uma criatura mais do céu que da terra, como ele mesmo diria em verso, se ainda cultivasse a poesia.

Os mesmos gestos complacentes que a moça fizera antes de entrar na casa em S. Domingos, fizera-os depois de sair, e na barca e na cidade, até chegar à Rua dos Inválidos, onde morava.

Nunca mais terrível devia ser ao nosso André Soares a idéia dos cento e vinte mil-réis mensais, nem mais saudosa a idéia dos duzentos. A verdade, porém, é que não pensou em nada disso; estava mordido deveras. A moça, depois de entrar em casa, não chegou à janela como ele esperava; mas em todo o caso dera-lhe todos os sinais de que não era indiferente a seus afetos, e esta certeza fez do desgraçado daquela manhã o mais venturoso de todos os mortais.

Há de parecer singular a mais de uma leitora que, não lhe tendo dito a desconhecida onde morava, André Soares adivinhasse que era justamente na casa da Rua dos Inválidos onde a vira entrar.

Mas a explicação é facílima.

André Soares pertencia à classe ingênua dos namorados que fazem indagações no armarinho da esquina ou na padaria ao pé. Depois de esperar um razoável tempo a ver se a bela dama aparecia à janela, André dirigiu os passos a uma padaria que ficava perto, e fez as interrogações precisas a um caixeiro que ali encontrou. Veio a saber que a moça era viúva, que se chamava Cláudia, que vivia com um irmão empregado em Niterói, onde tinha alguns parentes.

André Soares arriscou algumas perguntas a respeito da interessante viúva e soube que era exemplar, notícia que o informador lhe deu com muitos comentários a respeito das vantagens da virtude e o apêndice de alguns casos de pessoas que ele conhecera e que desonraram as barbas dos seus avós.

Além destas notícias soube ainda André Soares que a moça possuía cerca de vinte apólices e uma preta velha, que eram toda a riqueza do defunto marido.

— É um bom princípio para quem casar com ela, acrescentou o caixeiro com ar malicioso.

— Decerto, disse André Soares brincando com a corrente do relógio e fitando um olhar perscrutador no caixeiro, que brincava com a tampa de uma barrica vazia.

— Não é muito, mas é um bom princípio, repetiu este.

— E há já algum farejador? arriscou o namorado.

— Nenhum.

— Admira!

— Há muita gente que passa e olha, mas ela não se importa com ninguém.

André Soares estava mais contente do que se lhe viessem trazer o decreto da nomeação malograda. Tinha a moça todas as condições que ele podia exigir naquelas circunstâncias. Sobretudo achava-se ele livre de concorrentes.