Caímos juntos, rolando um sobre o outro, e a maré de sangue que escoava dos ferimentos abertos de cada um se misturou na grama.

Mais eu não sei – desmaiei.

Novamente, retornei à vida: fraco, quase à morte, encontrei-me deitado em uma cama. Juliet estava ajoelhada ao lado. Estranho! Meu primeiro e debilitado pedido foi por um espelho. Eu estava tão pálido e horrível que minha pobre menina hesitou, como me disse posteriormente; mas atendeu ao meu pedido. Pelos deuses! Eu me achei um jovem bem parecido quando vi o querido reflexo de minhas bem conhecidas feições. Confesso que é uma fraqueza, mas aviso que mantenho um considerável afeto pelo rosto e pelos membros que observo sempre que me olho num espelho; e tenho muitos em minha casa, e os consulto com mais frequência do que qualquer beldade em Veneza. Antes que muitos de vocês me condenem, permitam-me dizer que ninguém melhor do que eu conhece o valor do próprio corpo; ninguém, provavelmente, exceto eu mesmo, já o teve roubado.

Incoerentemente, a princípio falei do anão e de seus crimes e repreendi Juliet por ela ter aceitado tão facilmente o amor dele. Ela achava que fosse um desvario meu, como era de esperar, e por isso levou algum tempo até eu ser bem-sucedido em admitir que o Guido, cujo arrependimento fizera com que ela me aceitasse novamente, era eu mesmo. E, enquanto eu amaldiçoava amargamente o monstruoso anão e abençoava o golpe certeiro que lhe tirara a vida, subitamente me examinei, quando a ouvi dizer “Amém!”, sabendo que aquele a quem ela ultrajara era eu mesmo. Uma pequena reflexão ensinou-me o silêncio e me possibilitou falar daquela noite medonha sem quaisquer tropeços excessivos. O ferimento que me impusera não era um arremedo: levei um bom tempo para me recuperar.

Enquanto o benevolente e generoso Torella sentava-se a meu lado, transmitindo sabedoria, ensinando como conquistar amigos através do arrependimento, e a minha querida Juliet ficava perto de mim, atendendo às minhas necessidades e me alegrando com seus sorrisos, os trabalhos de minha cura corporal e mental seguiam juntos.

Aliás, nunca consegui recuperar toda a minha força. Minhas faces são pálidas desde então, e fiquei um pouco curvado. Juliet, às vezes, se arrisca a insinuar amargamente a maldade que causou essa mudança, mas eu a beijo imediatamente e lhe digo que foi tudo para melhor. Sou o mais apaixonado e o mais fiel dos maridos. E a verdade é esta: se não fosse aquele ferimento, eu nunca mais poderia chamá-la.

Não voltei a visitar a praia nem procurei pelo tesouro do demônio. Contudo, enquanto medito sobre o passado, geralmente penso, e meu confessor não se opõe a consentir a ideia, que o anão deve ter sido um bom espírito, não um ente do mal, enviado pelo meu anjo da guarda para me mostrar a insensatez e a miséria do orgulho. Tão bem, afinal, aprendi essa lição, rudemente ensinado que fui, que agora sou conhecido por todos os meus amigos e conterrâneos pelo nome de Guido, o Cortês.

abertura

Autora e obra

 

No verão de 1816, um episódio histórico e antológico para a literatura gótica aconteceu numa mansão às margens do Lago Genebra, pertencente a LORD Byron, um dos poetas mais emblemáticos do romantismo europeu. Byron recebia alguns amigos, para a temporada, e vez por outra, a visita de outros conhecidos, como o médico de Byron, John Polidori. Estavam todos muito frustrados – era o verão mais chuvoso dos últimos anos. Encarcerados dentro de casa, entediados, começaram a ler histórias de fantasmas{5}. Foi então que LORD Byron lançou o desafio: “Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas”, um passatempo, mas ao mesmo tempo uma disputa entre eles, já que seria proclamado vencedor o autor da melhor história. Byron e o poeta Percy Bysshe Shelley, marido de Mary, não se dedicaram à tarefa. Quanto ao médico Polidori, há diferentes versões, mas o fato é que também não exibiu sua história. Somente a jovem Mary (tinha vinte e um anos na época), que jamais havia publicado coisa alguma, se pôs a “pensar em uma história (...) que nos falasse aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse um espantoso horror – capaz de fazer o leitor olhar em torno, amedrontado, capaz de gelar o seu sangue e acelerar os batimentos do seu coração. Se eu não conseguisse isso, minha história de fantasmas seria indigna do nome”.

Na verdade, o romance que Mary escreveria não seria exatamente uma história de “fantasmas”:

 

“Minha imaginação, solta, possuía-me, guiava-me, dotando as sucessivas imagens que se erguiam em minha mente de uma clareza que ia além dos habituais limites do sonho. Eu via – com os olhos fechados, mas com uma penetrante visão mental –, eu via o pálido estudioso das artes profanas ajoelhado junto à coisa que ele tinha reunido. Eu via o horrível espectro de um homem estendido, que, sob a ação de alguma máquina poderosa, mostrava sinais de vida e se agitava com um movimento meio vivo, desajeitado. Deve ter sido medonho, pois terrivelmente espantoso devia ser qualquer tentativa humana para imitar o estupendo mecanismo do Criador do mundo. O sucesso deveria aterrorizar o artista; ele devia fugir de sua odiosa obra cheio de horror. Ele esperaria que, entregue a si mesma, a centelha de vida que ele lhe comunicara extinguir-se-ia, que aquela coisa que recebera uma animação tão imperfeita mergulharia na matéria morta, e ele poderia então dormir na crença de que o silêncio do túmulo envolveria para sempre a breve existência do hediondo cadáver que ele olhara como berço de uma vida.