Estavam todos muito frustrados – era o verão mais chuvoso dos últimos anos. Encarcerados dentro de casa, entediados, começaram a ler histórias de fantasmas{5}. Foi então que LORD Byron lançou o desafio: “Cada um de nós vai escrever uma história de fantasmas”, um passatempo, mas ao mesmo tempo uma disputa entre eles, já que seria proclamado vencedor o autor da melhor história. Byron e o poeta Percy Bysshe Shelley, marido de Mary, não se dedicaram à tarefa. Quanto ao médico Polidori, há diferentes versões, mas o fato é que também não exibiu sua história. Somente a jovem Mary (tinha vinte e um anos na época), que jamais havia publicado coisa alguma, se pôs a “pensar em uma história (...) que nos falasse aos misteriosos medos de nossa natureza e despertasse um espantoso horror – capaz de fazer o leitor olhar em torno, amedrontado, capaz de gelar o seu sangue e acelerar os batimentos do seu coração. Se eu não conseguisse isso, minha história de fantasmas seria indigna do nome”.

Na verdade, o romance que Mary escreveria não seria exatamente uma história de “fantasmas”:

 

“Minha imaginação, solta, possuía-me, guiava-me, dotando as sucessivas imagens que se erguiam em minha mente de uma clareza que ia além dos habituais limites do sonho. Eu via – com os olhos fechados, mas com uma penetrante visão mental –, eu via o pálido estudioso das artes profanas ajoelhado junto à coisa que ele tinha reunido. Eu via o horrível espectro de um homem estendido, que, sob a ação de alguma máquina poderosa, mostrava sinais de vida e se agitava com um movimento meio vivo, desajeitado. Deve ter sido medonho, pois terrivelmente espantoso devia ser qualquer tentativa humana para imitar o estupendo mecanismo do Criador do mundo. O sucesso deveria aterrorizar o artista; ele devia fugir de sua odiosa obra cheio de horror. Ele esperaria que, entregue a si mesma, a centelha de vida que ele lhe comunicara extinguir-se-ia, que aquela coisa que recebera uma animação tão imperfeita mergulharia na matéria morta, e ele poderia então dormir na crença de que o silêncio do túmulo envolveria para sempre a breve existência do hediondo cadáver que ele olhara como berço de uma vida. Ele dorme; mas é acordado; abre os olhos; avista a horrorosa coisa de pé ao lado de sua cama, afastando as cortinas e contemplando-o com os olhos amarelos, vazios de expressão, mas especulativos”.

 

Intuitivamente, ou também por força de sua cultura literária, embora ainda tão nova, a escritora iniciante compreendeu o cerne do horror que deveria despertar com sua história. O monstro sem nome, que acabou roubando para si – no uso pop – o nome do seu criador, Frankenstein, poderia ter aparência medonha, mas isso ainda não seria terror suficiente, “capaz de gelar o sangue”. Talvez o fosse a presença de um morto-vivo? Ou talvez – e isso é que torna Frankenstein um dos pilares, uma obra de fundação do gênero gótico – o fato de expor seu leitor à empatia pelo jovem cientista, Victor. Em quem não ecoa, intimamente, inconfessadamente, a indagação: Eu também teria tentado [criar um ser vivo], se soubesse como? Se tal poder estivesse ao meu alcance, eu o repudiaria? Poderia acontecer portanto, por conta da tentação e da fragilidade de princípios, comigo a mesma tragédia que devastou Victor Frankenstein?

Aí está o íntimo horror que Mary Shelley conseguiu despertar em gerações e gerações de leitores. Tudo o que se refere à intromissão do homem na natureza, regida sob o signo da pretensão de tudo conhecer e de manter experiências sob controle, é descendente de Frankenstein – dos desastres ecológicos causados por inventos que utilizem energia nuclear ao Parque dos Dinossauros, de Spielberg. A menção a Prometeu – aquele que arrebatou o fogo dos deuses e o entregou aos seres humanos – é eloquente. Assim como o castigo pela blasfêmia.

Mary Shelley nasceu em Londres, em 1797, e morreu em 1851. Em “Transformação” (1831), algumas das fixações do gótico são acionadas, principalmente a tentação. Também aceitaríamos, no caso, o baú e seus tesouros? Aceitaríamos a troca de corpos? No entanto, talvez o elemento mais característico seja o homem devasso como suscetível a propostas sacrílegas. Guido é bom precursor de outros protagonistas com construção baseada na decrepitude moral, cujo exemplo mais famoso e terrível é Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray, romance de Oscar Wilde, de 1890). Lá, Dorian atravessa os anos, a iniquidade, a vida entregue ao desgaste e à dissipação dos mais diferentes vícios e da maldade e se mantém jovem, encantador, já que as marcas de sua iniquidade gravam-se, não em seu rosto, mas em seu retrato. Wilde, aliás, é autor de um peculiar clássico, acidamente crítico da sociedade inglesa, O Fantasma de Canterville, basicamente uma novela de humor. De humor gótico – praticamente o único em seu gênero, já que articula todos os elementos do terror romântico, mas numa atmosfera de deboche, até mesmo com a morte e a condenação do fantasma homônimo da obra.

Curiosamente, em O Ladrão de Corpos (1992), o vampiro Lestat, de Anne Rice, o mesmo de Entrevista com o Vampiro, recebe uma proposta de um mortal, que lhe oferece a oportunidade de viver temporariamente como um ser humano, de novo, trocando de corpo com ele. Lestat, embora a sensatez o alerte em contrário, faz a troca, e o mortal em questão foge, roubando assim o corpo morto-vivo do vampiro, com direito a todos os seus poderes e à imortalidade.

São, enfim, modelos, de personagens, dramas e enredos, que permanecem e se multiplicam numa linhagem antiga, popular, da literatura, com seus “fantasmas” volta e meia ressurgindo diante de nós.

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Notas

 

{ 1 } Coriolano: Personagem de uma tragédia de Shakespeare baseada na lenda do líder romano Gaius Marcius Coriolano.

{ 2 } Silfídica: Esbelta, elegante. Vem de sílfide, criatura da mitologia céltica e nórdica; gênio feminino do ar.

{ 3 } Antípodas: Ou seja, para o outro lado do mundo, em relação ao lugar onde se passa a cena.

{ 4 } Werner: Peça teatral do gênero tragédia, de 1822. Byron e Mary Shelley se conheceram bem. Estiveram juntos, no episódio do Lago Genebra que resultou na novela antológica Frankenstein.

{ 5 } O relato está na introdução que a autora fez de Frankenstein ou o Prometeu Moderno, na edição de 1831. Tradução de Miércio Araújo Jorge Honkins (Porto Alegre, L&PM, 1985).

Obra conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

 

Organização: Veio Libri – Luiz Antonio Aguiar

© 2011 Tradução de: Domingos Demasi.

Capa: Claudia Xavier

Fotos da capa: túmulo: Don Farrall/Getty Images; vampira: Jentakespictures/iStockphoto.com; gárgula: FelixStrummer/iStockphoto.com; aranha: Alex-mit/iStockphoto.com

Projeto gráfico e diagramação: Andrea Yanaguita

Conversão em epub: {kolekto}

 

Direitos de publicação:

© 2011 Editora Melhoramentos Ltda.

 

1.ª edição digital, junho de 2014

ISBN: 978-85-06-06649-2 (impresso)

ISBN: 978-85-06-07633-0 (digital)

 

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