– Aqui, onde tu tens vivido, onde tua memória paira como um fantasma visitante do céu, passarei as longas horas até nos encontrarmos, e nunca, minha Juliet, novamente, dia ou noite, nos separaremos. Mas tu, meu amor, recolhe-te; a fria manhã e a brisa espasmódica tornarão tuas faces pálidas e encherão de languidez teus olhos iluminados pelo amor. Ah, mais doce de todas, pudesse eu pousar um beijo neles! Eu poderia, penso, descansar.
Então ele se aproximou ainda mais e, pensei eu, estava para subir até o quarto dela. Eu havia hesitado, para não aterrorizá-la; agora não era mais senhor de mim mesmo. Corri para lá, joguei-me em cima dele e afastei-o com um empurrão. Gritei:
– Ó infeliz, asqueroso e malformado!
Não preciso repetir epítetos, todos, aparentemente, pretendendo injuriar uma pessoa pela qual, agora, sinto certa predileção. Um grito agudo emergiu dos lábios de Juliet. Eu nem ouvi nem vi mais nada, senti apenas meu inimigo, cuja garganta agarrei, e o cabo de minha adaga; ele se debateu, mas não conseguiu escapar; afinal, roucamente, pronunciou estas palavras:
– Faça-o!... acerte-me! Destrua este corpo... você ainda viverá, que sua vida seja longa e feliz!
A adaga que descia deteve-se com tais palavras, e ele, sentindo meu aperto relaxar, desprendeu-se e sacou sua espada, enquanto o rebuliço na casa e o voo de tochas de um aposento a outro mostravam que logo seríamos separados, e eu, oh, era melhor que morresse! Assim, tampouco me importava se ele não sobrevivesse. Em meio à minha agitação, havia muita maquinação: se eu caísse e, desse modo, ele não sobrevivesse, não ligaria para o golpe mortal que eu poderia desferir contra mim mesmo. Ao mesmo tempo, portanto, que ele pensava que eu tivesse parado e ao mesmo tempo que eu percebia o vilão tirar vantagem de minha hesitação, no súbito golpe que desferiu contra mim, joguei-me em sua espada e, no mesmo instante, enfiei a minha adaga, com uma mira verdadeiramente desesperada, em seu flanco. Caímos juntos, rolando um sobre o outro, e a maré de sangue que escoava dos ferimentos abertos de cada um se misturou na grama.
Mais eu não sei – desmaiei.
Novamente, retornei à vida: fraco, quase à morte, encontrei-me deitado em uma cama. Juliet estava ajoelhada ao lado. Estranho! Meu primeiro e debilitado pedido foi por um espelho. Eu estava tão pálido e horrível que minha pobre menina hesitou, como me disse posteriormente; mas atendeu ao meu pedido. Pelos deuses! Eu me achei um jovem bem parecido quando vi o querido reflexo de minhas bem conhecidas feições. Confesso que é uma fraqueza, mas aviso que mantenho um considerável afeto pelo rosto e pelos membros que observo sempre que me olho num espelho; e tenho muitos em minha casa, e os consulto com mais frequência do que qualquer beldade em Veneza. Antes que muitos de vocês me condenem, permitam-me dizer que ninguém melhor do que eu conhece o valor do próprio corpo; ninguém, provavelmente, exceto eu mesmo, já o teve roubado.
Incoerentemente, a princípio falei do anão e de seus crimes e repreendi Juliet por ela ter aceitado tão facilmente o amor dele. Ela achava que fosse um desvario meu, como era de esperar, e por isso levou algum tempo até eu ser bem-sucedido em admitir que o Guido, cujo arrependimento fizera com que ela me aceitasse novamente, era eu mesmo. E, enquanto eu amaldiçoava amargamente o monstruoso anão e abençoava o golpe certeiro que lhe tirara a vida, subitamente me examinei, quando a ouvi dizer “Amém!”, sabendo que aquele a quem ela ultrajara era eu mesmo. Uma pequena reflexão ensinou-me o silêncio e me possibilitou falar daquela noite medonha sem quaisquer tropeços excessivos. O ferimento que me impusera não era um arremedo: levei um bom tempo para me recuperar.
Enquanto o benevolente e generoso Torella sentava-se a meu lado, transmitindo sabedoria, ensinando como conquistar amigos através do arrependimento, e a minha querida Juliet ficava perto de mim, atendendo às minhas necessidades e me alegrando com seus sorrisos, os trabalhos de minha cura corporal e mental seguiam juntos.
Aliás, nunca consegui recuperar toda a minha força. Minhas faces são pálidas desde então, e fiquei um pouco curvado. Juliet, às vezes, se arrisca a insinuar amargamente a maldade que causou essa mudança, mas eu a beijo imediatamente e lhe digo que foi tudo para melhor. Sou o mais apaixonado e o mais fiel dos maridos. E a verdade é esta: se não fosse aquele ferimento, eu nunca mais poderia chamá-la.
Não voltei a visitar a praia nem procurei pelo tesouro do demônio. Contudo, enquanto medito sobre o passado, geralmente penso, e meu confessor não se opõe a consentir a ideia, que o anão deve ter sido um bom espírito, não um ente do mal, enviado pelo meu anjo da guarda para me mostrar a insensatez e a miséria do orgulho. Tão bem, afinal, aprendi essa lição, rudemente ensinado que fui, que agora sou conhecido por todos os meus amigos e conterrâneos pelo nome de Guido, o Cortês.

Autora e obra
No verão de 1816, um episódio histórico e antológico para a literatura gótica aconteceu numa mansão às margens do Lago Genebra, pertencente a LORD Byron, um dos poetas mais emblemáticos do romantismo europeu. Byron recebia alguns amigos, para a temporada, e vez por outra, a visita de outros conhecidos, como o médico de Byron, John Polidori.
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