Os dous saíram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo não guardava as tradições de trinta anos passados? Com que rapidez morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções? Era bem um sinal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade diante daqueles povos tenazes que os guardam durante séculos! Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições, mantê-las sempre vivazes nas memórias e nos costumes... Albernaz vinha contrariado. Contava arranjar um número bom para a festa que ia dar, e escapavalhe. Era quase a esperança de casamento de uma das quatro filhas que se ia, das quatro, porque uma delas já estava garantida, graças a Deus!

O crepúsculo chegava e eles entraram em casa mergulhados na melancolia da hora. A decepção, porém, demorou dias. Cavalcanti, o noivo de Ismênia, informou que nas imediações morava um literato, teimoso cultivador dos contos e canções populares do Brasil. Foram a ele. Era um velho poeta que teve sua fama aí pelos setenta e tantos, homem doce e ingênuo que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se entretinha em publicar coleções, que ninguém lia, de contos, canções, adágios e ditados populares.

Foi grande a sua alegria quando soube o objeto da visita daqueles senhores. Quaresma estava animado e falou com calor; e Albernaz também, porque via na sua festa, com um número de folklore, meio de chamar a atenção sobre sua casa, atrair gente e... casar as filhas. A sala em que foram recebidos era ampla; mas estava tão cheia de mesas, estantes, pejadas de livros, pastas, latas, que mal se podia mover nela. Numa lata lia-se: Santa Ana dos Tocos; numa pasta: São Bonifácio do Cabresto.

- Os senhores não sabem, disse o velho poeta, que riqueza é a nossa poesia popular! Que surpresas ela reserva!... Ainda há dias recebi uma carta de Urubu-de-Baixo com uma linda canção. Querem ver?

O colecionador revolveu pastas e afinal trouxe de lá um papel onde leu:

Se Deus enxergasse pobre

Não me deixaria assim:

Dava no coração dela

Um lugarzinho pra mim.

O amor que tenho por ela

Já não cabe no meu peito;

Sai-me pelos olhos afora

Voa às nuvens direito.

- Não é bonito?... Muito! Se os senhores conhecessem então o ciclo do macaco, a coleção de histórias que o povo tem sobre o símio?... Oh! Uma verdadeira epopéia cômica!

Quaresma olhava para o velho poeta com o espanto satisfeito de alguém que encontrou um semelhante no deserto; e Albernaz, um momento contagiado pela paixão do folclorista, tinha mais inteligência no olhar com que o encarava.

O velho poeta guardou a canção de Urubu-de-Baixo, numa pasta; e foi logo à outra, donde tirou várias folhas de papel. Veio até junto aos dous visitantes e disse-lhes:

- Vou ler aos senhores uma pequena história do macaco, das muitas que o povo conta... Só eu já

tenho perto de quarenta e pretendo publicá-las, sob o título Histórias do Mestre Simão. E, sem perguntar se os incomodava ou se estavam dispostos a ouvir, começou:

“O macaco perante o juiz de direito. Andava um bando de macacos em troça, pulando de árvore em árvore, nas bordas de uma grota. Eis senão quando um deles vê no fundo uma onça que lá caíra. Os macacos se enternecem e resolvem salvá-la. Para isso, arrancaram cipós, emendaram-nos bem, amarraram a corda assim feita à cintura de cada um deles e atiraram uma das pontas à onça.