Naquele dia, ele lembrou de Marley uma só vez, quando disse aos visitantes que o sócio tinha morrido há sete anos. Por isso, achou estranho, ao colocar a chave na fechadura, ter visto na tranca, sem que ela tivesse passado por qualquer mudança nesse meio-tempo, não uma tranca, mas o rosto de Marley.

Sim, o rosto de Marley. Ele não estava na escuridão, como os outros objetos no pátio, mas iluminado por uma luz fraca, e chamava a atenção como uma lagosta estragada em uma despensa escura. Não estava irritado nem colérico, mas olhava para Scrooge do jeito que Marley costumava olhar, com uns óculos fantasmagóricos levantados sobre uma fantasmagórica testa. Os cabelos se moviam de uma maneira estranha, como se uma brisa ou uma baforada de ar quente soprasse neles, e os olhos, embora estivessem arregalados, não se mexiam. Tudo isso e mais a sua cor pálida o tornavam assustador. Mas o horror parecia não ter nada a ver com o rosto, agindo por conta própria e sem fazer parte de sua expressão.

Scrooge viu tudo isso e a tranca voltou ao normal.

Seria mentira dizer que ele não se abalou, que não se deu conta de que, desde a infância, não tinha uma sensação tão estranha. Mesmo assim, pôs a mão na chave novamente, girou-a com decisão, entrou e acendeu a vela.

Na verdade, chegou a parar, em um momento de indecisão, antes de fechar a porta, e deu uma olhada atrás dela, quase esperando ser aterrorizado pela visão de Marley. Porém não havia nada atrás da porta, só os parafusos e as porcas que prendiam a tranca. Então ele gritou “Xô! Xô!” e fechou a porta com um estrondo.

O som ecoou pela casa como um trovão. Cada quarto do andar de cima e cada barril da adega, no porão, pareciam ter uma série de ecos particulares e isolados. Mas Scrooge não era homem de se assustar com ecos. Trancou a porta, atravessou o corredor e subiu a escada lentamente, segurando a vela.

A escada era tão larga que daria para carregar um caixão no sentido da largura, com a cabeça apontando para a parede e os pés para o corrimão, e ainda sobrava espaço. Talvez tenha sido por isso que, na semiescuridão, pareceu a Scrooge que um carro fúnebre subia na sua frente. Meia dúzia de lampiões de gás na rua não eram suficientes para iluminar bem a entrada, e por aí se vê como era grande a escuridão daquele lugar.

Mas Scrooge não ligou a mínima e continuou a subir. A escuridão era de graça, e Scrooge gostava disso. Antes de fechar a pesada porta, deu uma olhada em todas as peças para ver se estava tudo em ordem. A imagem do rosto ainda estava bem viva na sua memória, por isso fez uma boa vistoria.

Sala de estar, quarto de dormir, despensa, tudo em ordem. Ninguém debaixo da mesa ou do sofá. Uma chama fraca na lareira. Colher e prato à mão. Uma panela de sopa de aveia (Scrooge estava com um princípio de resfriado) estava sobre o fogão. Ninguém debaixo da cama, ninguém no armário, ninguém no camisolão pendurado em uma atitude suspeita contra a parede. Tudo certo no depósito de lenha, como sempre. A grade enferrujada da lareira, um velho par de sapatos, dois cestos de pesca, uma bacia em um tripé e um atiçador de brasas.

Satisfeito, fechou a porta e trancou-a com tranca dupla, coisa que não costumava fazer. Prevenido contra qualquer surpresa, tirou a gravata, vestiu o chambre, calçou os chinelos e sentou-se para tomar a sua sopa em frente ao fogo.

Era realmente um fogo fraco demais para uma noite fria como aquela. Foi preciso se sentar bem perto, inclinar-se sobre ele, para poder tirar daquele punhadinho de brasas alguma sensação de calor. A lareira era antiga, construída há muito tempo por algum mercador holandês, toda enfeitada de azulejos e ilustrada com cenas da Bíblia. Havia diversas imagens de Caim e Abel, as filhas do Faraó, a rainha de Sabá, anjos mensageiros descendo dos céus em nuvens que pareciam feitas com plumas de colchão, Abraãos, Baltazares, apóstolos saindo para o mar em pequenos barcos, centenas de figuras para distraí-lo. E, no entanto, o rosto de Marley, morto há sete anos, surgia do nada, como o cajado do antigo profeta, eliminando todo o resto.