Eu desisto da conferência, eu. Não vou mais ler o relatório nem fazer conferência nenhuma... (Perplexidade.) Mas quero a palavra! Uma ameaça maior que a infecção das águas paira sobre a cidade, e sobre isso preciso falar!

ALACKSEN — O doutor com a palavra!

STOCKMAN — Quero revelar a vocês todos uma descoberta que fiz de muito maior alcance que uma localização errada de canos ou uns banhos podres...

HOVSTAD — Silêncio sobre os banhos! O senhor se comprometeu com a Assembleia, nem uma palavra a respeito!

STOCKMAN — Minha nova descoberta não diz respeito à fonte das águas, e sim a outra fonte, a fonte moral da nossa existência...

PREFEITO (para Biling) — Que insinuação!...

STOCKMAN — Não apenas os encanamentos mas também nossa sociedade está repousando em solo pestilencial, o solo pestilencial da mentira.

ALACKSEN (toca a campainha) — O orador deve moderar-se.

STOCKMAN — Peço que me dêem atenção por alguns instantes, quanto mais não seja em respeito ao trabalho dedicado que venho realizando há muitos anos pela gente de nossa querida Molendal. (Catarina aplaude. Outros seguem. Silêncio.) Quando vim morar nesta cidade, antes de vir para cá, passei alguns anos no extremo norte do país, em contato direto com homens que viviam tão miseravelmente que eu muitas vezes me perguntava se era preciso mesmo um médico ali, se não seria melhor um veterinário...

BILING (que tomava notas na ata, suspende a caneta) — Que Deus me castigue se jamais ouvi...

HOVSTAD — Isto é vilipendiar uma honrada população.

STOCKMAN — Porém quando tive a ventura de chegar aqui, minha esperança e fé renasceram e sonhei’ criar aqui um grande estabelecimento termal, consagrando-me inteiramente ao bem de minha cidade natal e da gente de minha terra. (Palmas definidas. Contendo os aplausos.) Na ilusão dessa esperança vivi longos anos, até anteontem de tarde. Quando meus olhos se abriram e eu vi, perplexo, uma série de coisas. Entre as quais a extrema burrice de nossos dirigentes.

PREFEITO (levantando-se) — Senhor Presidente!

ALACKSEN (nervoso, batendo a campainha) — Não foi para isso que lhe concedemos a palavra...

STOCKMAN Outra burrice, Sr. Alacksen, dar tanta importância a uma palavra. Detesto os dirigentes.

É impossível para um homem livre dar um passo em qualquer direção que seja sem esbarrar com um deles.

HOVSTAD — Senhor Presidente, são permitidas tais expressões?

STOCKMAN — Levei muito tempo para ver dentro da alma desses senhores... Embora tivesse sob meus olhos, desde a infância, um exemplar soberbo da espécie sinistra, na figura de meu irmão, Peter, um homem de movimentos lentos e preconceitos tenazes. .. Mas eu não direi mais nada sobre dirigentes, parece que o assunto exalta os ânimos. E não é preciso perder tempo. Tenho convicção íntima que no mundo tudo tem jeito e que retrógrados não são mais que velhos destroços de um mundo intelectual decadente. Eles próprios se encarregarão, lutando uns contra os outros, da própria extinção.

PETRA — Bravo, pai, que coragem...

CATARINA — Senta, menina.

STOCKMAN (indo beijá-la) — Não é preciso um médico para lhes apressar o falecimento. Além do que não são eles o grande perigo, não são eles os inimigos terríveis da verdade e, portanto, da liberdade. Não são eles!

HOVSTAD — Quem são?

ALACKSEN — Quem são?

CATARINA — Quem são, Tomas?

PREFEITO — Quem são?

STOCKMAN — Eu respondo. Sinto medo, mas hoje direi tudo. Meus amigos, o maior inimigo da verdade, e portanto, da liberdade entre nós é essa coisa terrível que tem o nome de maioria. (Perplexidade.) A maioria liberal, a maioria popular, é ela! Vocês, eles, eu, o povo. O povo é o maior inimigo do povo. Pronto, já sabem!

CATARINA — Tomas!. _

CAPITÃO — Calma, por favor...

PETRA — Pai!

HOVSTAD — É revoltante!

BILING — Meu Deus, não é possível...

PREFEITO — Não acredito no que ouvi...

(Essas vozes vêm todas juntas, com vozerio, o maior de todos.)

ALACKSEN — A Assembleia exige que o orador retire as palavras que disse!!!

PREFEITO — Apoiado!

STOCKMAN — De modo algum, Sr. Alacksen, não retirarei. Não é a grande maioria da população que está tirando o meu direito de dizer a verdade sobre as águas?

HOVSTAD — O direito está sempre com a maioria!

BILING — A verdade está sempre com a maioria!

STOCKMAN — Não, nunca! O direito não está com a maioria NUNCA. Nunca, eu lhes digo. Essa é apenas mais uma mentira social, tomada sagrada pela repetição, que interessa aos poderosos.