A mãe pegou em mim e entregou-me nas mãos da criança, que me levou à boca; ao ver-me em tal situação, dei tamanhos gritos, que a criança, assustada, deixou-me cair, e teria infalivelmente quebrado a cabeça se a mãe não me aparasse no avental. A ama, para sossegar o pequeno, deu-lhe um guizo do tamanho de uma pipa, cheio de pedregulhos, e preso, por meio de uma corda, à cintura do pimpolho. Isso porém não o sossegou, tendo a ama de recorrer ao extremo remédio e que foi dar-lhe de mamar. Forçoso é confessar que nunca vi coisa que mais nojo me causasse do que os peitos da citada ama, não sabendo mesmo a que possa compará-los.
Isto fez-me lembrar os peitos das damas inglesas, que tão encantadores são e que nos aparecem tais como são, porque são proporcionais à nossa vista e à nossa estatura; entretanto, o microscópio, aumentando-os, faz-nos aparecer muitos sítios, que escapam à vista desarmada, tornando-os extremamente feios. Pois os peitos da ama obedeciam a estas regras. Assim foi que, em Lilipute, uma mulher me dizia que lhe parecia muito feio, que descobria na minha pele grandes buracos, que os pêlos da barba eram dez vezes mais ásperos do que as cerdas do porco e a minha tez, composta de diversas cores, não podia ser mais desagradável, ainda que seja louro e passe por possuir uma bonita carnação.
Depois do jantar, meu amo mandou chamar os ceifeiros e, pelo que lhe percebi pela voz e pelos gestos, encarregou a mulher de ter grande cuidado comigo. Sentia-me bastante cansado e com grande vontade de dormir; percebendo isso, minha ama meteu-me na sua cama e tapou-me com um lenço branco, mas muito mais largo do que a vela de um navio.
Dormi duas horas e sonhei que estava em casa ao lado de minha mulher e de meus filhos, o que tornou maior a minha aflição quando, ao acordar, me encontrei só num enorme quarto de duzentos a trezentos pés de comprido por duzentos de alto e deitado numa cama com a largura de dez toesas. Minha ama saíra para tratar dos serviços da casa e tinha-me deixado fechado. A cama ficava à altura de quatro toesas do chão; contudo, certas necessidades naturais forçavam-me a descer, e não me atrevi a chamar; embora o tentasse, seria em vão, pois uma voz como a minha, e estando a tão grande distancia, como a que havia do quarto em que eu estava, à cozinha, onde se encontrava a família, não era fácil de ouvir. Entretanto, dois ratos treparam ao longo dos cortinados e desataram a correr pela cama; um aproximou-se da minha cara e tão assustado fiquei, que me levantei logo empunhando um sabre para me defender. Estes terríveis animais tiveram a insolência de me atacar por dois lados, mas furei a barriga de um, enquanto o outro fugiu. Após esse feito, deitei-me para descansar um pouco e tornar a mim. Estes animais eram do tamanho de um cão de fila, mas infinitamente mais ágeis e mais ferozes, de maneira que, se tivesse tirado o cinturão e posto debaixo de mim antes de me deitar, teria sido infalivelmente devorado pelos ratos.
Pouco depois, a minha ama entrou no quarto e, vendo-me cheio de sangue, pegou em mim. Apontei-lhe o rato morto, sorrindo e fazendo outros sinais, dando-lhe a entender que não estava ferido, o que lhe causou certa alegria. Tentei fazer-lhe compreender que desejava muito ir para o chão, o que ela fez, mas o acanhamento não me permitiu exprimir de outra maneira, que não fosse apontando para a porta e fazendo muitas mesuras. A bondosa mulher percebeu, ainda que com certa dificuldade, e, tomando-me pela mão, levou-me até ao jardim, onde me deixou. Afastando-me umas cem toesas e, fazendo sinal para que me não olhasse, ocultei-me entre duas folhas de azedas e aí fiz o que o leitor facilmente adivinhará.
Capítulo II
Retrato da filha do lavrador — O autor é levado a uma cidade onde havia uma feira, e, em seguida, à capital — Pormenores da sua viagem.
A citada senhora tinha uma filha de nove anos, criança muito inteligente e esperta para a sua idade. A mãe de combinação com ela, lembrou-se de me preparar, para passar a noite, a cama da boneca, antes que anoitecesse. Meteram a referida cama numa gaveta da mesinha de cabeceira e colocaram esta gaveta em cima de uma prateleira, suspensa na parede, por causa dos ratos; e foi essa a cama em que dormi durante a minha permanência em casa de tão bondosas criaturas. Era tão hábil esta pequena, que, depois de me vestir e despir-me diante dela umas duas vezes, soube vestir-me e despir-me, quando lhe aprazia, embora fosse só por obediência, que lhe eu dava semelhante trabalho; fez-me seis camisas e outras espécies de roupa branca, do mais fino pano que fora possível encontrar-se, (e que, em boa verdade, era muito mais grosso do que o tecido para velas de navio), e ela própria as lavava. A minha lavadeira armara-se também em professora, ensinando-me o idioma do seu país. Quando eu apontava para qualquer coisa, dizia-me logo o nome que tinha, de maneira que, dentro em pouco, fiquei apto para pedir o que queria; era de muito boa índole; deu-me o nome de Grildrig, palavra que significa aquilo a que os Latinos chamam homúnculos, os italianos homunceletino e os ingleses manikin. É a ela que devo a conservação da minha existência. Estávamos sempre juntos; eu chamava-lhe Glumdalclitch, ou mestrazinha, e seria um indício de negra ingratidão se alguma vez esquecesse os cuidados e a afeição que me proporcionava. De todo o coração, desejo que um dia esteja em condições de retribuí-los, em lugar de ser talvez a inocente, mas funesta, causa da sua desventura, como tive ocasião de verificar.
Corria então por todo o país que o meu amo encontrara no campo um animal, do tamanho de, talvez, um splacnuck (animal da região que devia ter seis pés) e com a mesma configuração de um ente humano; que imitava o homem nas suas menores ações e parecia falar uma espécie de linguagem, que lhes era própria; que já aprendera muitos vocábulos do idioma deles; que caminhava direito sobre os dois pés, era dócil e tratável, acudia logo que o chamavam, fazia tudo quanto lhe ordenavam, tinha os membros delicados e uma tez mais branca e mais fina do que a filha de um fidalgo aos três anos de idade. Um lavrador, seu vizinho e seu íntimo amigo, veio fazer-lhe uma visita para verificar a veracidade do boato que correra. Mandaram-me logo chamar; colocaram-me em cima da mesa, por onde caminhei, como me ordenavam. Desembainhei e embainhei a espada; cumprimentei o amigo do meu amo; perguntei-lhe, na língua do seu país, como ia de saúde, dei-lhe as boas vindas, enfim, segui todas as indicações da minha pequena professora. Este homem, a quem a avançada idade cansara a vista, pôs os óculos para me ver melhor; essa ação fez-me soltar uma grande gargalhada. As pessoas da família, que descobriram o motivo da minha alegria, também desataram a rir; o alvejado, porém, era tão gebo e tão palerma, que não se melindrou com isso.
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