Alugou uma grande sala de trezentos a quatrocentos pés de largura, onde colocou uma mesa com sessenta pés de diâmetro, em cima da qual eu devia desempenhar o meu papel; fê-la cercar de paliçadas, para evitar que eu caísse. Foi em cima desta mesa que me exibiu dez vezes por dia, com grande espanto e satisfação de todo o povo. Então, sabia eu falar sofrivelmente a sua língua e entendia perfeitamente tudo quanto diziam de mim; além disso, aprendera o seu alfabeto e podia, embora com certo custo, ler e explicar os livros, porque Glumdalclitch dera-me lições em casa do pai e nas horas de descanso no decorrer da viagem; trazia um livro na algibeira, um pouco maior do que um volume de atlas, livro para uso das crianças, e que era uma espécie de catecismo resumido; servia-se dele para me ensinar as letras do alfabeto e dava-me a interpretação das palavras.
Capítulo III
O autor é mandado para a corte; a rainha compra-o e o apresenta ao rei — Discute com os sábios de Sua Majestade — Preparam-lhe um aposento — Torna-se favorito da rainha — Mantém a honra do seu país — As suas questões com o anão da rainha.
O trabalho e o cansaço, durante alguns dias, abalaram a minha saúde, porque, quanto mais meu amo ganhava, mais se tornava insaciável. Perdera completamente o apetite e quase me tornara um esqueleto. Meu amo, dando por isso e julgando que pouco tempo teria de vida, resolveu fazer-me valer o mais possível. Enquanto assim raciocinava, um sardral, ou escudeiro do rei, veio dar ordem a meu amo para me levar imediatamente à corte, para divertimento da rainha e de todas as damas. Algumas dessas damas já me haviam visto e relataram coisas estupendas acerca da minha pequena figura, do meu gracioso garbo e da minha fina inteligência. Sua Majestade e a comitiva ficaram extremamente encantadas com as minhas maneiras. Ajoelhei-me e pedi graciosamente vênia para lhe beijar o real pé; esta princesa, porém, apresentou-me o seu dedo mínimo, que abrangi com os meus dois braços e onde pousei, com o máximo respeito, os meus lábios. Dirigiu-me perguntas gerais com referência ao meu país e às minhas viagens, ao que respondi o mais distintamente que me foi possível, empregando poucas palavras; perguntou-me se ficaria satisfeito em viver na corte; fiz uma grande reverência até tocar na mesa em que me haviam colocado, e respondi humildemente ser escravo do meu amo, porém que, se isso apenas dependesse de mim, ficaria encantado em consagrar a minha vida ao serviço de Sua Majestade: em seguida, perguntou a meu amo se queria vender-me. Ele, que supunha que a minha vida não ia além de um mês, ficou radiante com a proposta e fixou o preço da minha venda em mil peças de ouro, que imediatamente lhe foram entregues. Pedi então à rainha que, visto haver-me tornado escravo de Sua Majestade, me concedesse a mercê de que Glumdalclitch, que fora sempre cheia de atenções e cuidados para comigo, fosse admitida em honra do seu serviço e continuasse a ser minha governanta. Sua Majestade concedeu-me isso e bem assim o lavrador, que bem contente se mostrou por ver a filha na corte. Quanto à pobre pequena, não podia ocultar a sua alegria. Meu amo retirou-se e disse, ao partir, que me deixava em um bom lugar, ao que apenas redargui com uma cavalheiresca vênia.
A rainha notou a frieza com que acolhera o cumprimento e a despedida do lavrador e perguntou-me o motivo. Tomei a liberdade de responder a Sua Majestade que só devia ao meu antigo amo a obrigação de me não haver esmagado como a um pobre animal inofensivo, achado casualmente nos seus campos; que essa boa ação estava bem paga pelo proveito que tirara, mostrando-me por dinheiro e pela importância que recebera pela minha venda; que a minha saúde estava muito abalada pela minha escravatura e pela obrigação contínua de entreter e divertir a populaça a todas as horas do dia e que, se meu amo não me julgasse a vida em perigo, Sua Majestade não me teria adquirido; como, porém, não tencionava doravante ser tão infeliz sob a proteção de tão boa e tão nobre princesa, ornamento da natureza, admiração do mundo, delícias dos seus súditos e fênix da criação, esperava que as apreensões que sofrera com o meu último amo ficariam sem efeito, pois já achava a minha vida reanimada pela influência da sua augustíssima presença.
Tal foi a súmula do meu discurso, proferido com diversos barbarismos e muitas vezes hesitante.
A rainha, que bondosamente desculpou os defeitos da minha arenga, ficou surpreendida por encontrar tanto espírito e tão bom senso em um pequeno animal; tomou-me nas mãos e levou-me imediatamente ao rei, que estava encerrado no seu escritório. Sua Majestade, príncipe muito sério e de rosto severo, não reparando bem à primeira vista na minha figura, perguntou finalmente à rainha desde quando se tornara protetora de um splacnuck (pois me tomara por este inseto). A rainha, porém, que tinha infinito espírito, colocou-me delicadamente sobre a secretária do rei e ordenou-me dissesse eu próprio quem era. Fi-lo em poucas palavras e Glumdalclitch, que ficara à entrada do escritório, não podendo estar muito tempo sem mim, entrou e explicou a Sua Majestade que eu fora encontrado num campo.
O rei, mais sábio do que ninguém dos seus Estados, fora educado no estudo das filosofias e principalmente nas matemáticas. Entretanto, quando viu de perto a minha estatura e o meu aprumo, antes que eu principiasse a falar, imaginou que poderia ser uma artificiosa máquina como um engenho que faz mover os espetos de assar, ou, melhor, um relógio inventado e executado por um hábil artista; mas, quando notou raciocínio nos sons que emitia, não pôde ocultar o seu espanto.
Mandou chamar três famosos sábios que estavam, então, de serviço na corte (segundo o admirável costume desse país). Esses cavalheiros, depois de terem examinado de perto o meu talhe com a máxima exatidão, discutiram diferentemente a meu respeito. Eram todos de opinião que não podia ser produto que seguisse as leis ordinárias da natureza, porque era destituído da faculdade natural de conservar a minha vida, quer pela agilidade, quer pela facilidade de trepar a uma árvore, quer pelo poder de cavar a terra para fazer buracos onde pudesse ocultar-me, como os coelhos. Os meus dentes, que examinaram detidamente, fizeram-lhes conjecturar que era um animal carnívoro.
Um desses filósofos foi mais longe; disse que eu era um embrião, um aborto; essa opinião, contudo, foi rejeitada pelos outros dois, que observaram que os meus membros eram perfeitos e completos na sua espécie e que tinha vivido muitos anos, o que pareceu evidente na minha barba, cujos pêlos descobriram com um microscópio. Não quiseram afirmar que eu fosse anão porque a minha pequenez estava fora de toda a comparação, e porque o anão favorito da rainha, o menor que até então se vira nesse reino, tinha quase trinta pés de altura. Após grande discussão, concluíram unanimemente que eu não passava de um replum sealcath, o que, sendo interpretado literalmente, queria dizer lusus naturae, decisão muito conforme com a filosofia moderna da Europa, cujos professores, desprezando o velho subterfúgio das causas ocultas, a favor das quais os sectários de Aristóteles tentam mascarar a sua ignorância, inventaram esta maravilhosa solução de todas as dificuldades da física. Admirável progresso da ciência humana!
Feita esta conclusão decisiva, tomei a liberdade de proferir algumas palavras: Dirigi-me ao soberano e protestei a Sua Majestade que vinha de uma região em que a minha espécie se encontrava em muitos milhões de indivíduos de ambos os sexos, em que os animais, as árvores e as casas eram proporcionais ao meu tamanho, e onde, por conseguinte, podia sentir-me em condições de defender-me e encontrar o meu sustento, as minhas necessidades e as minhas comodidades, do mesmo modo que qualquer súdito de Sua Majestade. Esta resposta fez sorrir desdenhosamente os filósofos, que replicaram que o lavrador me ensinara bem e que eu sabia a lição na ponta da língua. O rei, que tinha um espírito mais esclarecido, despedindo os sábios, mandou chamar o lavrador que, por felicidade, ainda não saíra da cidade. Tendo-o, pois, interrogado particularmente, e em seguida acareando-o comigo e com a pequena, Sua Majestade principiou a acreditar que o que eu dissera podia muito bem ser verdade. Rogou à rainha que desse ordem para que tivessem comigo um cuidado muito especial, e foi de opinião que me deixassem continuar sob a tutela de Glumdalclitch, ao notar que tínhamos uma grande afeição mútua.
A rainha ordenou ao seu carpinteiro que fizesse uma caixa que me pudesse servir de quarto de dormir, conforme o modelo que eu e Glumdalclitch lhe fornecêssemos.
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