Este homem, que era um artífice muito hábil, fez-nos, em três semanas, um quarto de madeira com dezesseis pés de largo e doze de alto, com janelas, uma porta e dois aposentos.

Um outro operário excelente, que se tornara célebre pelas curiosas bugigangas que fabricava, lembrou-se de me fazer duas cadeiras de um material parecido com marfim, e duas mesas com um armário, para eu guardar as minhas roupas; em seguida, a rainha mandou procurar pelos mercadores as mais finas fazendas para me fazer uma roupa.

Esta princesa gostava tanto de me ouvir conversar, que não podia jantar sem mim. Tinha uma mesa colocada sobre aquela em que Sua Majestade comia, com uma cadeira em que me sentava. Glumdalclitch permanecia de pé sobre um tamborete, perto da mesa, para poder tomar conta de mim.

Certo dia, o príncipe, ao jantar, quis ter o prazer de conversar comigo, fazendo-me perguntas concernentes a costumes, religião, leis, governo e literatura da Europa, a que eu respondi o melhor que pude. O seu espírito era tão apurado e o seu juízo tão seguro, que fez reflexões e observações muito sensatas sobre tudo quanto lhe disse; referindo-se a dois partidos, que dividem a Inglaterra, perguntou-me se eu era whig ou tory; depois, virando-se para o seu ministro, que se postara por detrás dele, empunhando um bastão branco tão alto como o mastro do Soberano Real, disse:

— Como a grandeza humana pouco vale, pois que vis insetos têm também ambição pelas classes e distinções entre si! Têm pequenos farrapos que envergam, tocas, gaiolas, caixas, a que chamam palácios e solares; equipagens, librés, títulos, empregos, funções, paixões, como nós. Entre eles ama-se, odeia-se, engana-se, trai-se, como aqui.

Era assim que filosofava Sua Majestade, na ocasião em que lhe falara na Inglaterra, e eu sentia-me confuso e indignado de ver a minha pátria, a senhora das artes, a soberana dos mares, o árbitro da Europa, a glória do Universo, tratada com tanto desprezo.

Não havia nada que me ofendesse e me incomodasse mais do que o anão da rainha, que, sendo de uma estatura até então não vista naquele país, se tornou de extrema insolência na presença de um homem muito menor do que ele. Olhava-me com ar altivo e desdenhoso e zombava incessantemente da minha pequena estatura. Vinguei-me, apenas, tratando-o como irmão. Um dia, durante o jantar, o malévolo anão, aproveitando o ensejo, em que não pensava em coisa alguma, tomou-me pelo meio do corpo e deixou-me cair num prato de leite, desaparecendo logo. Fiquei apenas com as orelhas de fora e, se não fora um excelente nadador, decerto morreria afogado. Glumdalclitch, nessa ocasião, estava casualmente na parte oposta do aposento. A rainha ficou tão consternada com este acidente, que lhe faltou presença de espírito para me acudir; a minha pequena governanta, porém, correu logo em meu auxílio e tirou-me habilmente do prato, depois de eu ter bebido mais de meia canada de leite. Meteram-me na cama; entretanto, só sofri o desaire de perder a roupa, que ficou toda manchada. O anão foi castigado e eu senti certo prazer em assistir a esse castigo.

 

Vou agora fazer ao leitor uma ligeira descrição desse país, tanto pelo que pude conhecê-lo, como pelo que dele percorri. Toda a extensão do reino é aproximadamente de três mil léguas de comprimento e de duas mil e quinhentas de largura; daqui concluo que os nossos geógrafos da Europa se enganam, quando julgam que apenas há mar entre o Japão e a Califórnia. Imaginei sempre que devia haver daquele lado um grande continente, para servir de contrapeso ao grande continente da Tartária. Devem, pois, corrigir-se os mapas e juntar esta vasta extensão do país à parte nordeste da América; e para isso estou disposto a auxiliar os geógrafos com as minhas luzes. Este reino é quase uma ilha, terminada ao norte por uma cadeia de montanhas que tem pouco mais ou menos trinta milhas de altitude, e de onde não é fácil a aproximação por causa dos vulcões, que são em grande número no cimo.

Os mais sábios ignoram que espécie de mortais habita além dessas montanhas, nem mesmo se lá existem habitantes. Não há porto algum nesse reino, e os locais da costa onde os rios vão perder-se no mar, são tão cheios de rochedos altos e escarpados, e o mar está ordinariamente tão agitado, que não há quase ninguém que se aventure a ele, de maneira que esses povos são excluídos de todo o comércio com o resto do mundo. Nos grandes rios pululam sempre excelentes peixes; assim, raramente se pesca no oceano, porque os peixes do mar são do mesmo tamanho dos da Europa e, com relação a eles, não merecem ser pescados; daí a evidência de que a natureza, na produção de plantas e animais de talhe enorme, se limita completamente a este continente, e, sob este ponto de vista, recorro aos filósofos. No entanto, apanham-se às vezes, na costa, baleias com que aquele povo se sustenta e se delicia. Vi uma dessas baleias, tão grande, que um homem daquela região mal a podia levar às costas. Às vezes, por curiosidade, trazem-nas em cestos a Lorbrulgrud; vi um pedaço num prato à mesa do rei.

 

A região é muito povoada, porque contém cinqüenta e uma cidades, perto de cem burgos cercados de muralhas, e bem importante número de aldeias e lugarejos. Para satisfazer a curiosidade do leitor, bastará talvez dar a descrição de Lorbrulgrud. Esta cidade fica situada sobre um rio que a atravessa e a divide em duas partes quase iguais. Contém mais de oitenta mil casas e perto de seiscentos mil habitantes; tem de comprimento três glonglus (que são cerca de cinqüenta e quatro milhas inglesas) e dois e meio de largo, segundo a medida que tomei sobre o mapa real, levantado por ordem do rei, que foi estendido no chão de propósito para eu ver, e tinha cem pés de comprimento.

O palácio do rei é um edifício bastante irregular; é antes um amontoado de edifícios, que têm perto de sete milhas de circuito; os principais aposentos têm a altura de duzentos e quarenta pés, tendo largura proporcional.

Cederam um coche para Glumdalclitch e para mim, a fim de vermos a cidade, as praças e os monumentos. Suponho que o coche era quase um quadrado como a sala de Westminster, não, porém, tão alto. Um dia, fizemos parar o coche em diversas lojas, onde os mendigos, aproveitando o ensejo, se amontoaram junto das portinholas e me patentearam os mais horrorosos espetáculos que foi dado ver a olhos ingleses. Como eram disformes, estropiados, sujos, cheios de chagas, de tumores que à minha vista pareciam enormes, peço ao leitor que ajuíze da impressão que essas misérias me causaram e me poupe o descrevê-los.

 

As aias da rainha pediam muitas vezes a Glumdalclitch que as visitasse nos seus aposentos e que fosse eu com ela, para terem o prazer de me ver de perto e tocar-me. Diversas vezes me despiam e me punham nu dos pés à cabeça, para melhor examinarem a delicadeza dos meus membros. Nesse estado, gabavam-me, metiam-me às vezes no seio e faziam-me mil carícias; nenhuma delas, porém, tinha a pele tão macia como Glumdalclitch.

Estou persuadido de que não tinham más intenções; tratavam-me sem cerimônia, como uma criatura sem raciocínio, despiam-se à vontade e tiravam a própria camisa na minha presença sem tomar as precauções que a decência e o pudor exigem.