Estava, entretanto, colocado em cima das cômodas, defronte delas e era obrigado, embora constrangido, a vê-las completamente nuas. E digo constrangido, porque, na verdade, essa vista não me dava tentação alguma nem o menor prazer. A sua pele parecia-me áspera, pouco unida e de diferente coloração, com manchas aqui e ali, do tamanho de pratos; os seus compridos cabelos caídos pareciam pedaços de fitas; nada digo acerca de outros sítios do corpo, donde é preciso concluir que a beleza das mulheres, que tanta emoção nos causa, não passa de uma coisa imaginária, pois que as mulheres da Europa se assemelhariam a essas mulheres a que acabo de aludir, se os nossos olhos fossem microscópicos. Suplico ao belo sexo do meu país que não se melindre com esta minha observação. É coisa de pouca monta para as belas, serem feias a olhos penetrantes que nunca verão. Os filósofos sabem bem o que isto é; quando, porém, olham uma beleza, vêm-na como toda a gente e já não são filósofos. A rainha, que conversava muitas vezes comigo acerca de minhas viagens por mar procurava todos os ensejos possíveis para me distrair, quando me via melancólico. Perguntou-me, certo dia, se tinha destreza para manejar uma vela ou um remo, e se um pouco de exercício nesse gênero não conviria à minha saúde. Respondi que conhecia muito bem dos dois, porque, embora o meu emprego particular fosse o de cirurgião, isto é, médico da armada, fui, muitas vezes, obrigado a trabalhar como marinheiro, mas ignorava como isso se fazia neste país, onde o barco menor era igual a um navio de guerra de primeira ordem entre nós; demais, um navio proporcionado à minha estatura e às minhas forças não poderia flutuar durante muito tempo naquelas águas, e não poderia governá-lo. Sua Majestade disse que, se eu quisesse, o seu carpinteiro de navios faria um pequeno barco e me escolheria um lugar próprio, em que eu pudesse navegar. O carpinteiro de navios, seguindo as minhas indicações, construiu, no prazo de dez dias, um pequeno navio com todas as suas cordagens, capaz de conter comodamente oito europeus. Assim que o deu pronto, a rainha ordenou ao construtor que fizesse um tanque de madeira, com o comprimento de trezentos pés, a largura de cinqüenta e a profundidade de oito, o qual era bem alcatroado para impedir que a água saísse; foi colocado no chão, ao longo da parede, numa sala exterior do palácio: tinha uma torneira perto do fundo para deixar sair a água de tempos a tempos, e dois criados podiam-no encher em meia hora. Foi aí que remei para meu divertimento, tanto como para divertir a rainha e as suas damas, que sentiram grande prazer em ver a minha agilidade e jeito. Algumas vezes içava a vela e o meu único trabalho era governar o leme, enquanto as damas faziam vento com os leques; quando se encontravam cansadas, alguns pajens impeliam e faziam andar o navio com o seu sopro, enquanto eu mostrava a minha destreza a estibordo e a bombordo, conforme me apetecia. Quando acabava, Glumdalclitch guardava o navio no seu quarto e suspendia-o de um prego para secar.
Durante este exercício aconteceu-me um dia um acidente que me ia custando a vida, porque um dos pajens colocou o meu navio no tanque, e uma mulher da comitiva de Glumdalclitch levantou-me muito delicadamente para me meter no navio; mas, escorregando-lhe pelos dedos, cairia infalivelmente da altura de quarenta pés para a coberta, se não fosse detido por um grande alfinete, que estava preso no avental dessa mulher. A cabeça do alfinete passou por entre a camisa e o cós das calças e assim fiquei suspenso no ar pelos fundilhos, até que Glumdalclitch veio em meu auxílio.
Doutra vez, um dos criados, cuja função consistia em mudar a água ao meu tanque de três em três dias, foi tão desastrado que deixou cair à água uma enorme rã, sem que desse por isso.
A rã esteve oculta até o momento em que embarquei; então, vendo que tinha onde pousar, trepou no navio e fê-lo inclinar de tal maneira que me vi obrigado a fazer contrapeso do lado oposto, para evitar que o navio submergisse, e depois, usando dos remos, forcei-a a sair.
Vou agora narrar o maior perigo que corri neste reino. Glumdalclitch tinha-me fechado à chave no seu quarto, saindo para negócios ou para fazer alguma visita. Era no verão e a janela do quarto e bem assim as janelas e a porta dos meus aposentos encontravam-se abertas; enquanto estava sentado tranqüila e melancolicamente perto da mesa, ouvi qualquer coisa entrar pela janela e andar aos pulos de um lado para outro. Ainda que ficasse um pouco assustado, tive coragem de olhar para fora, sem porém me levantar da cadeira; vi então um animal a pular e a saltar para todos os lados, o qual, por fim, se aproximou da minha caixa; este animal, que era um macaco, olhando para dentro e em todas as direções, causou-me tal terror que não tive a presença de espírito suficiente para me meter debaixo da cama, como podia fazer com grande facilidade. Depois de muitas caretas e cabriolas, descobriu-me, e, metendo uma das mãos pela abertura da porta, como costuma fazer um gato que brinca com um rato, embora mudasse muitas vezes de lugar para me pôr a salvo, agarrou-me pelas bandas do colete, (que era de fazenda desse país, muito espessa e muito forte) e puxou-me para fora. Agarrou-me com a mão direita e segurou-me como uma ama segura uma criança que vai amamentar, do mesmo modo que eu vi fazer à mesma espécie de animal com um gato da Europa. Quando me debatia, apertava-me com tanta força, que me pareceu que o melhor partido a tomar era ficar sossegado e ceder a tudo quanto lhe aprouvesse. Tenho alguns motivos para crer que me tomou por um pequeno macaco, porque, com a outra mão, afagava-me o rosto. Foi repentinamente interrompido por um ruído à porta do aposento, como se alguém tentasse abri-la; de súbito, saltou pela janela por onde tinha entrado, e daí, para os beirais, caminhando sobre as três mãos e segurando-me com a quarta, até que atingiu um telhado que ficava contíguo ao nosso. Nesse instante ouvi que Glumdalclitch soltava estridentes gritos. A pobre moça estava num grande desespero e toda essa parte do palácio ficou sobressaltada; os criados correram em busca de enxadas; o macaco foi visto por muitas pessoas sentado na empena de um edifício, segurando-me como uma boneca numa das mãos e dando-me de comer com a outra, metendo-me na boca algumas carnes que tinha apanhado, e batendo-me, quando eu não queria comer, o que era motivo de galhofa para a gentalha que me via debaixo, no que tinha razão porque, salvo para mim, a coisa tinha sua graça. Alguns atiraram pedras na esperança de fazer descer o macaco, mas foram logo proibidos disso pelo receio que tinham de me partir a cabeça.
As escadas foram montadas e muitos homens subiram-nas. Logo o macaco, aterrado, deixou o campo livre e largou-me sobre um beiral. Então, um dos lacaios da minha dona, excelente rapaz, subiu e, metendo-me na algibeira das calças, fez-me descer com segurança.
Estava quase sufocado com as porcarias que o macaco me tinha metido nas goelas; a minha querida dona, porém, deu-me um vomitório que me aliviou. Estava tão fraco e tão moído pelos apertões deste animal, que fui obrigado a recolher à cama, onde permaneci durante quinze dias.
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