Disse que esses dois corpos formavam a mais augusta assembléia do universo que, de acordo com o príncipe, dispunha de tudo e regulava, de certo modo, o destino de todos os povos da Europa.

Em seguida, desci aos arcanos da justiça, onde tinham assento veneráveis intérpretes da lei, que decidiam as diferentes contestações dos particulares, que puniam o crime e protegiam a inocência. Não deixei de falar da sábia e econômica administração das nossas finanças e de me explanar sobre o valor e as expedições dos nossos guerreiros de mar e de terra. Computei o número do povo, contando também que havia milhões de homens professando diversas religiões e diferentes partidos políticos entre nós. Não omiti nem os nossos jogos, nem os espetáculos, nem nenhuma outra particularidade que eu supusesse dar honra ao meu país, e terminei com uma pequena narração histórica das últimas revoluções da Inglaterra, desde há cem anos para cá, pouco mais ou menos.

 

Esta conversa durou cinco audiências, cada uma delas de grande número de horas, e o rei ouviu tudo com a máxima atenção, escrevendo o extrato de quase tudo o que lhe dizia e marcando, ao mesmo tempo, os pontos sobre que tencionava interrogar-me.

Assim que concluí estes meus longos discursos, Sua Majestade, numa sexta audiência, examinando os seus extratos, apresentou-me muitas dúvidas e grandes objeções acerca de cada assunto. Perguntou-me quais eram os meios vulgares empregados para cultivar o espírito da nossa juvenil nobreza; quais as medidas que se tomavam, quando uma casa nobre se extinguia, o que podia dar-se de tempos a tempos; quais as qualidades precisas aos que deviam ser criados como novos pares; se o capricho do príncipe ou uma importante quantia dada de propósito a uma dama da corte e a um favorito, ou um desejo de fortalecer um partido de oposição ao bem público, não eram nunca motivos para essas promoções; qual era o grau de ciência que os pares possuíam acerca das leis do seu país, e como se tornavam capazes de decidir em último recurso dos direitos dos seus compatriotas; se eram sempre isentos de avareza e preconceitos; se os santos bispos de que eu falara, alcançavam sempre esse alto cargo pela sua ciência sobre matérias teológicas e pela santidade da sua vida; se nunca tiveram fraquezas; se nunca tinham intrigado enquanto padres, se não tinham sido outrora esmoleres de um par, por intermédio do qual conseguiam ser elevados a bispos e se, neste caso, não seguiam sempre, cegamente, a opinião do par e não serviam a sua paixão ou o seu preconceito na assembléia do Parlamento.

 

Quis saber como se procedia para a eleição daqueles que chamara de comuns; se um estranho, com uma bolsa recheada de ouro, não podia, algumas vezes, ganhar o sufrágio dos eleitores à força do dinheiro, fazer-se preferido ao seu próprio senhor, ou aos mais importantes e mais distintos da nobreza na vizinhança; por que é que havia tamanha paixão em se ser eleito para a assembléia, pois que esta eleição dava ensejo a uma grande despesa e não rendia coisa alguma; que era preciso, pois, que os eleitos fossem homens de um completo desinteresse e de uma eminente e heróica virtude, ou, ainda, que contassem ser indenizados e reembolsados com usura pelo príncipe e pelos ministros, sacrificando por eles o bem público. Sua Majestade apresentou-me, sobre esta matéria, dificuldades extraordinárias, que a prudência me não permite repetir.

Acerca do que lhe disse dos arcanos da justiça, Sua Majestade quis ser esclarecido em muitíssimos pontos. Estava bem no caso de satisfazê-lo, pois em outros tempos quase ficara arruinado com um longo processo em estado de ser julgado; se ficava muito caro um pleito; se os advogados tinham liberdade para defender as causas evidentemente injustas; se nunca se havia notado que o espírito partidário e de religião tivesse feito pender a balança; se esses advogados tinham algum conhecimento dos primeiros inícios e das leis gerais de equidade, ou se não se contentavam em saber as leis arbitrárias e os costumes locais do país; se eles e os juízes tinham o direito de interpretar e comentar as leis a seu modo; se os pleiteantes e as sentenças não estavam algumas vezes em contradição uns com outros na mesma espécie.

Depois, começou a interrogar-me sobre a administração das finanças, e disse-me que eu tinha desprezado esse assunto, porque não fizera subir senão a cinco ou seis milhões por ano os impostos; que, no entanto, a despesa do Estado ia muito além e excedia muitas vezes a receita.

 

Não podia, dizia ele, conceber como é que um reino ousava despender além do seu rendimento e comer os seus bens como um particular. Perguntou-me quais eram os nossos credores e se nós teríamos com que lhes pagar; se mantínhamos a seu respeito as leis da natureza, da razão e da equidade. Estava admirado da pormenorização que lhe fizera das nossas guerras e das despesas excessivas que exigiam. Era preciso, certamente, dizia ele, que nós fôssemos um povo bem irrequieto e bem questionador ou que tivéssemos maus vizinhos.

— Que têm vocês a deslindar — acrescentava ele — fora das ilhas? Possuem aí outro negócio que não seja o comércio? Devem pensar em fazer conquistas? E não lhes basta tomar conta dos portos e das costas?

O que deveras o assombrou, foi saber que mantínhamos um exército no seio da paz e no meio de um povo livre. Disse que, se fôssemos governados com o nosso próprio consentimento, não podia imaginar que tivéssemos medo e contra quem nos havíamos de bater. Perguntou-me se a casa de um particular não seria melhor defendida por ele próprio, pelos filhos e pelos criados do que por uma cáfila de patifes e de gatunos tirados ao acaso da escória do povo, com salário diminuto, e que poderiam ganhar cem vezes mais.

 

Riu muito da minha extravagante aritmética, (como lhe aprouve chamar), quando computei o número dos nossos habitantes, calculando as diferentes seitas que vivem entre nós, com relação à religião e à política.

Notou que, entre as diversões da nobreza, eu mencionara o jogo. Quis saber em que idade era essa diversão ordinariamente praticada e por quanto tempo, e se algumas vezes não se alterava a fortuna dos particulares e lhes não fazia cometer ações baixas e indignas; se homens vis e corruptos não podiam, algumas vezes, pela sua habilidade nesse mister, adquirir grandes riquezas, ter mesmo os nossos pares em uma espécie de dependência, acostumá-los a viver em más companhias, desviá-los inteiramente da cultura do seu espírito e do cuidado dos seus negócios particulares e forçá-los pelas perdas que podiam causar, ensiná-los talvez a servir-se dessa mesma habilidade infame que os arruinara.

Ficara extremamente admirado com a narrativa que lhe fizera da nossa história do último século, que não passava, segundo ele, de um encadeamento horrível de conjurações, de rebeliões, de chacinas, de morticínios, revoluções, de exílios e dos mais horrendos defeitos que a avareza e o espírito de facção, a hipocrisia, a perfídia, a cruzada, a raiva, a loucura, o ódio, a inveja, a maldade e a ambição podiam engendrar.

 

Sua Majestade em uma outra audiência teve o trabalho de recapitular a substância de tudo quanto eu dissera, comparou as perguntas que me dirigira com as respostas que lhe dera; depois, tomando-me nas suas mãos, e afagando-me carinhosamente, exprimiu-se por estas palavras, que nunca esquecerei assim como não esquecerei o modo por que as pronunciou: -Meu querido amiguinho Grildrig, fizeste um panegírico bem extraordinário acerca do teu país; provaste à evidência que a ignorância, a preguiça e o vício podem ser, às vezes, as únicas qualidades de um homem de Estado; que as leis são esclarecidas, interpretadas e aplicadas o melhor possível por indivíduos cujos interesses e rapacidade os levam a corrompê-las, a embrulhá-las e a iludi-las. Noto entre vós a constituição de um governo que, no seu princípio, foi talvez suportável, porém que o vício desfigurou por completo. Não me parece até, por tudo quanto me disseste, que uma única virtude seja requerida para alcançar alguma função ou algum lugar eminente. Vejo que os homens não são enobrecidos pela virtude; os sacerdotes, não avançam pela piedade ou pela ciência; os soldados, pelo seu comportamento ou pelo seu valor; os juízes, pela sua integridade; os senadores, pelo amor da pátria, nem os homens de Estado pelo seu saber. Mas quanto a ti, que passaste a mor parte da vida em viagens, quero crer que não tenhas enfermado dos vícios do teu país; mas, por tudo o que me referiste a princípio, e pelas respostas que te obriguei a dar às minhas objeções, suponho que a maioria dos teus compatriotas é a mais perniciosa casta de insetos que a natureza jamais suportou que rastejasse sobre a superfície da terra.


Capítulo V


Zelo do autor pela honra da sua pátria — Faz uma vantajosa proposta ao rei, que a rejeita — A literatura deste povo é imperfeita e limitada — As suas leis, os seus assuntos militares e os seus partidários de Estado.

O amor pela verdade não permitiu que eu calasse esta minha conversa com o rei; este mesmo amor, porém, não me deixou também que me abstivesse de falar, quando vi o meu querido país tratado com tal vilipêndio. Iludi habilmente a mor parte das suas perguntas e dei a cada coisa a mais favorável forma que pude, porque, quando se trata de defender a minha pátria e de manter a sua glória, exalto-me, quando vejo que não há razão; então, nada omito para ocultar os seus defeitos e deformidades e para colocar a sua virtude e beleza na posição mais vantajosa. Foi o que me esforcei por fazer nas diversas conferências que tive com o judicioso monarca; por desgraça, perdi o meu trabalho.

No entanto, necessário é desculpar um rei que vive completamente separado do resto do mundo e que, por conseguinte, ignora os usos e costumes das outras nações. Esse defeito de conhecimentos será sempre a causa de muitos preconceitos e de uma certa maneira limitada de pensar, e que as idéias de virtude e de vício de um príncipe estrangeiro e isolado fossem tidas como regras e como máximas a seguir.

 

Para confirmar o que acabo de dizer e para fazer ver os desgraçados efeitos de uma educação limitada, relatarei, aqui, uma coisa que, com certo custo, se acreditará. Com o fim de alcançar as boas graças de Sua Majestade, dei-lhe conta de uma descoberta feita há uns quatrocentos anos, um pequeno pó negro que uma pequeníssima centelha podia acender num instante, de tal maneira que seria capaz de fazer ir pelos ares montanhas, com um ruído maior do que o do trovão; que certa quantidade deste pó, sendo metida num tubo de bronze ou de ferro, conforme a sua grossura, fazia sair uma bala de chumbo ou de ferro com tão grande violência e tanta velocidade, que nada era capaz de sustar a sua força; que as balas assim lançadas de um tubo fundido e expelidas pela inflamação daquele pequeno pó, quebravam, voltavam, davam cabo de batalhões, de esquadrões, arrasavam as mais fortes muralhas, deitavam por terra as mais elevadas torres e faziam soçobrar os maiores navios; que esse pó, metido num globo de ferro expelido por certa máquina, queimava, esmagava casas e lançava em todas as direções estilhaços que fulminavam tudo quanto encontrassem; que conhecia a composição desse maravilhoso pó, onde só entravam coisas vulgares e de preço econômico e que até poderia ensinar aos seus súditos o segredo, se Sua Majestade quisesse; que, por meio deste pó, Sua Majestade derrubaria as mais fortes muralhas da mais potente cidade do seu reino, se alguma vez se sublevasse e ousasse resistir-lhe.

O rei, assombrado com a descrição que lhe fiz dos terríveis efeitos do meu pó, parecia não poder compreender como um inseto impotente, fraco, vil e rasteiro, imaginara tão horrível coisa, e de que ousava falar de forma tão familiar, que parecia olhar como bagatelas a carnificina e desolação que produzia tão pernicioso invento.

— Era preciso — dizia ele — que o seu inventor fosse um gênio mau, inimigo de Deus e das suas obras.

Respondeu que, embora nada lhe agradasse mais do que as novas descobertas, quer na natureza, quer nas artes, preferia perder a coroa a fazer uso de tão funesto segredo, proibindo-me, sob pena de perder a vida, de divulgá-lo a qualquer dos seus súditos; doloroso efeito da ignorãncia e da tacanhez de espírito de um príncipe sem educação. Este monarca, ornado com todas as qualidades que alcançam a veneração, o amor e a estima dos povos, de espírito forte e penetrante, de grande prudência, de profunda ciência, dotado de admiráveis talentos para o governo, quase adorado pelo seu povo, encontra-se estupidamente incomodado por um capricho excessivo e extravagante, de que nunca fizemos idéia na Europa, e deixa fugir uma ocasião que lhe vem parar às mãos para se tornar o senhor absoluto da vida, da liberdade e dos bens de todos os seus súditos.

 

Não digo isto com o intuito de rebaixar as virtudes e as luzes deste príncipe, a quem, não ignoro, esta narrativa há-de desacreditar no espírito de um leitor inglês; mas asseguro que este defeito não provinha senão da ignorãncia. Esses povos não tinham ainda reduzido a política a uma arte, como os nossos sublimes espíritos da Europa.

Lembro-me de que, numa conversa que certo dia tive com o rei, disse-lhe que havia entre nós um grande número de volumes escritos acerca da arte de governar, e Sua Majestade formou a esse respeito uma opinião muito baixa do nosso espírito, acrescentando que desprezava e detestava todo o mistério, todo o requinte e toda a intriga nos processos de um príncipe ou de um ministro de Estado. Não podia compreender o que eu queria dizer com os segredos de gabinete.

Quanto a ele, resumira a ciência de governar em estreitíssimos limites, reduzindo-a ao senso comum, à razão, à justiça, à brandura, à rápida decisão dos processos civis e criminais e a outras práticas semelhantes ao alcance de toda a gente e que não merecem referência. Por fim, arriscou este estranho paradoxo que, se alguém pudesse fazer crescer duas espigas ou dois bocados de erva num pouco de terra onde antes só havia um, mereceria mais do gênero humano e prestaria um serviço mais essencial ao seu país do que toda a raça dos nossos sublimes políticos.

 

A literatura deste povo é muitíssimo limitada e consiste apenas no conhecimento da moral, da história, da poesia e das matemáticas; preciso é, porém, confessar que são excelentes nestes quatro gêneros.

O último dos citados conhecimentos só é aplicado por eles a tudo quanto seja útil, de maneira que o melhor da nossa matemática seria muito pouco apreciado por eles. Com respeito a entidades metafísicas, abstrações e categorias, foi-me impossível fazer que as compreendessem.

Nesse país não é permitido decretar uma lei que empregue mais palavras do que as letras existentes no alfabeto, que é composto de vinte e duas apenas; há até muito poucas leis que tenham tais dimensões. São todas expressas em termos claros e simples, e esses povos não são nem muito vivos, nem muito engenhosos para lhes achar algum sentido; e, além disso, é crime capital escrever um comentário sobre qualquer lei.

 

Possuem desde remotíssimos tempos a arte de imprimir, tão bem como os chineses; as suas bibliotecas, porém, não são grandes; a do rei, que é mais numerosa, é constituída por mil volumes apenas, enfileirados numa galeria de duzentos pés de comprimento, onde tive a liberdade de ver todos os livros que me aprouve. O livro que tive, a princípio, curiosidade de ler, foi colocado em cima de uma mesa sobre a qual me puseram; então, voltando o rosto para o livro, comecei pelo alto da página; passeava por cima dele, para a direita e para a esquerda, cerca de dez passos, conforme o comprimento das linhas, e recuava à medida que caminhava na leitura das páginas. Começava a ler outra página pelo mesmo processo, depois do que a virava, o que com dificuldade pude fazer com as minhas duas mãos, porque o papel era tão espesso e tão seco como papelão. O seu estilo é claro, másculo e suave, mas nunca florido, porque não sabem entre si multiplicar as palavras inúteis e variar as expressões.