Percorri muitos dos seus livros, principalmente aqueles que diziam respeito à história e à moral; entre outros, li com prazer um velho tratado que estava no quarto de Glumdalclitch e que se intitulava: Tratado da fraqueza do gênero humano e que apenas era estimado pelas mulheres e pelas classes menos elevadas. Entretanto, tive a curiosidade de saber o que um autor desse país podia dizer sobre semelhante assunto. Este escritor fazia ver muito extensamente quanto o homem está pouco em situação de se pôr ao abrigo das injúrias da atmosfera e da fúria dos animais ferozes; quanto era ultrapassado por outros animais, quer em força, quer em velocidade, quer na previdência, quer na indústria. Mostrava que a natureza se tinha degenerado nos últimos séculos e que estava a declinar.
Ensinava que as próprias leis da natureza revelavam absolutamente que tínhamos sido, a princípio, de uma estatura maior e de uma compleição mais vigorosa, para não sermos sujeitos a uma súbita destruição pela queda de uma telha de cima de uma casa, ou de uma pedra arremessada pela mão de uma criança, ou para não nos afogarmos em algum rio. Desses raciocínios, o autor tirava diversas aplicações úteis à conduta da vida. Quanto a mim, não podia deixar de fazer reflexões sobre esta moral e sobre a tendência universal que têm todos os homens de se queixar da natureza e de exagerar os seus defeitos.
Estes gigantes tinham-se como pequenos e fracos. Que somos nós, europeus? Esse mesmo autor dizia que um homem não passava de um verme da terra e de um átomo e que a sua pequenez devia sempre humilhá-lo. Ai! que sou eu — dizia de mim para mim — eu, que estou abaixo de nada em comparação desses homens que se consideram tão pequenos e tão insignificantes!
Nesse mesmo livro fazia-se ver a vaidade do título de alteza e grandeza, e quanto era ridículo que um homem, que tinha mais de cento e cinqüenta pés de altura, ousasse dizer-se alto e grande. Que pensariam os príncipes e os soberbos senhores da Europa — pensava eu então — se lessem este livro, eles que, com cinco pés e algumas polegadas, pretendem, sem cerimônia, que se lhes dê o tratamento de alteza e de grandeza? Mas, por que é que não exigiam também os títulos de grossura, largura e espessura? Ao menos teriam podido inventar um termo geral para compreender todas essas dimensões e fazer-se chamar vossa extensão. Responderão, talvez, que as palavras alteza e grandeza se relacionam com a alma e não com o corpo; mas, se assim é, por que não tomar títulos mais próprios e mais condizentes com um sentido espiritual? Por que não se fizeram tratar por vossa sabedoria, vossa penetração, vossa previdência, vossa liberalidade, vossa bondade, vosso bom senso, vosso belo espírito? É preciso confessar que, como estes títulos teriam sido muito belos e muito honrosos, teriam também semeado muita amenidade nos cumprimentos dos inferiores, não havendo nada mais divertido do que um discurso cheio de contradições.
A medicina, a cirurgia, a farmacopéia são muito cultivadas nesse país. Entrei, certo dia, num vasto edifício, que julguei ser um arsenal cheio de balas e canhões: era a loja de um boticário; as balas eram pílulas e os canhões, seringas. Comparativamente, os nossos maiores canhões são, em verdade, modestas colubrinas.
Com relação à sua milícia, diz-se que o exército do rei é composto de cento e seis mil homens de pé e de trinta e dois mil de cavalo, se lícito é dar-se esse nome a um exército constituído de negociantes e lavradores, cujos comandantes não são senão seus pares e a nobreza sem recompensa nem soldo algum. São, de fato, bastante perfeitos nos seus exercícios e têm uma disciplina magnífica, o que não é para admirar, visto que os lavradores são comandados pelos seus próprios senhores e os burgueses pelos principais da sua própria cidade, eleitos à maneira de Veneza.
Tive curiosidade de saber por que este príncipe, cujos Estados são inacessíveis, julgava necessário ensinar ao seu povo a prática da disciplina militar; mas depressa soube a razão, quer pelas conversas que entabulei sobre este assunto, quer pela leitura das suas histórias; porque, durante muitos séculos, foram atacados pela doença a que tantos outros governos estão sujeitos: o pariato e a nobreza, disputando muita vez pelo poder, o povo pela liberdade e o rei pelo domínio arbitrário. Estas coisas, ainda que prudentemente temperadas pelas leis do reino, têm ocasionado a criação de facções, ateado paixões e causado guerras civis, a última das quais foi felizmente sufocada pelo avô do príncipe reinante, e a milícia, então estabelecida no reino, foi mantida desde então para prevenir novas desordens.
Capítulo VI
O rei e a rainha fazem uma viagem à fronteira, onde o autor os acompanha — Pormenor da maneira por que saí desse país para regressar à Inglaterra.
Tinha sempre presente no espírito que algum dia recuperaria a minha liberdade, ainda que não pudesse adivinhar por que meio, nem formar projeto algum com a menor probabilidade. O navio, que me tinha trazido e que soçobrara nessas paragens, era o primeiro barco europeu que, ao que se sabe, conseguira aproximar-se daí, e o rei dera ordens muito terminantes para que, se algum outro aparecesse, fosse puxado para terra e toda a tripulação e passageiros fossem metidos numa carroça de lixo e levados para Lorbrulgrud.
Estava muito empenhado em encontrar uma mulher da minha estatura com a qual eu pudesse multiplicar a espécie; no entanto, creio que preferiria morrer a fazer criação de desgraçados entes, destinados a ser engaiolados, assim como canários, e a ser, depois, vendidos por todo o reino a pessoas de elevada estirpe, como pequeninos animais curiosos. Era, na verdade, tratado com grande bondade; era o favorito do rei e da rainha e as delícias de toda a corte; mas estava numa situação que não convinha à dignidade da minha natureza humana. A princípio, não podia esquecer os preciosos penhores que deixara em minha casa. Desejava bastante encontrar-me entre povos com os quais pudesse entabular conversa como de igual para igual, e ter a liberdade de andar pelas ruas e pelos campos sem receio de ser pisado ou esmagado como uma rã ou ser o joguete de algum cãozinho; a minha libertação, porém, chegou mais depressa do que esperava e de uma forma extraordinária, que vou referir fielmente com todos os pormenores desse admirável acontecimento.
Havia dois anos que vivia nesse país. No princípio do terceiro, Glumdalclitch e eu fazíamos parte da comitiva régia numa viagem que o rei e a rainha realizaram pela costa meridional do reino. Levavam-me, de ordinário, na minha caixa de viagem, que era um aposento muito cômodo, com a largura de doze pés. Tinham, por minha ordem, colocado uma maca suspensa de cordões de seda aos quatro cantos superiores da minha caixa, a fim de que sentisse menos as sacudidelas do cavalo, sobre o qual um criado me levava na sua frente. Ordenara ao marceneiro que fizesse na tampa uma abertura com um pé quadrado para deixar entrar o ar, de maneira que, quando eu quisesse, pudesse abri-la e fechá-la por meio de uma corrediça.
Quando chegamos ao termo da nossa viagem o rei achou conveniente passar alguns dias numa vivenda que possuía perto de Flanflasnic, cidade situada a dezoito milhas inglesas da beira-mar. Glumdalclitch e eu estávamos deveras fatigados, e eu até um pouco constipado; mas a pobre pequena estava tão doente que era obrigada a permanecer sempre no quarto. Tive vontade de ver o oceano. Fiz-me parecer mais doente do que realmente me sentia e pedi que me dessem liberdade para respirar o ar do mar com um pajem com quem eu simpatizava muito e a quem, noutro tempo, fora confiado. Nunca esquecerei a repugnância com que Glumdalclitch consentiu nisso, nem a ordem severa que deu ao pajem para ter cuidado comigo, nem as lágrimas que chorou, como se tivesse o pressentimento do que me devia acontecer. O pajem conduziu-me, pois, na caixa, afastando-se quase meia légua da região, para os rochedos à beira-mar. Disse-lhe, então, que me pusesse no chão e, levantando o caixilho de uma das minhas janelas, comecei a olhar tristemente para o mar. Pedi então ao pajem que, tendo vontade de dormir alguns instantes na maca, mo deixasse fazer, pois isso me aliviaria. O pajem fechou bem a janela, com receio de que eu sentisse frio; depressa adormeci.
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