Tudo o que posso conjecturar é que, enquanto dormia, o pajem, julgando que nada tinha a recear, trepou pelos rochedos em busca de ovos das aves marinhas, tendo-o visto da janela a procurá-los e apanhá-los. Fosse como fosse, o que é certo é que fui subitamente acordado por um violento solavanco que a minha caixa sofreu, que me senti no ar e, em seguida, arrebatado com prodigiosa rapidez. O primeiro solavanco quase me fez saltar fora da maca, mas, depois, o movimento tornou-se mais suave. Gritei com todas as forças dos meus pulmões, mas debalde. Olhei por entre os vidros e só vi nuvens. Ouvia por cima da cabeça um terrível ruído, semelhante ao bater de asas. Então, comecei a conhecer a perigosa situação em que me encontrava e a suspeitar que alguma águia tivesse segurado o cordão da minha caixa com o bico, no desejo de a deixar cair sobre algum rochedo, como uma tartaruga na casca e, em seguida, tirar-me para fora e devorar-me, porque a sagacidade e o olfato desta ave permitem-lhe descobrir a sua presa a grande distância, ainda que muito oculto estivesse na caixa que tinha apenas a espessura de duas polegadas.

 

Ao cabo de certo tempo, notei que o ruído e o bater de asas aumentavam muito e que a caixa se movia para um lado e para outro como uma tabuleta impelida pelo vento; ouvi violentas pancadas que eram dadas na águia e depois, de repente, sentime cair perpendicularmente durante mais de um minuto, mas com incrível velocidade. A minha queda acabou por um terrível solavanco que retiniu na minha cabeça como a nossa catarata do Niágara, depois do que fiquei às escuras durante um minuto e então a minha caixa principiou a elevar-se, de maneira que pude ver o sol por cima da minha janela. Percebi, então, que caíra no mar e que a caixa flutuava. Supus, e suponho ainda, que a águia que arrebatara a minha caixa fora perseguida por duas ou três águias e constrangida a deixar-me cair, enquanto se defendia das outras, que lhe disputavam a presa. As chapas de ferro, colocadas por baixo da caixa, conservaram o equilíbrio e impediram que se quebrasse e esmigalhasse ao cair.

Oh! como desejei que Glumdalclitch me socorresse nesse súbito acidente que tanto me afastara dela! Posso, na verdade, dizer que, no meio das minhas desgraças, lamentava e tinha saudades da minha pequena dona, e pensava no desgosto que sentiria com a minha perda e no sentimento da rainha. Estou certo de que poucos viajantes há que se tenham encontrado em situação tão triste como aquela em que então me encontrava, esperando a todo o instante que a minha caixa se partisse ou pelo menos se voltasse ao primeiro golpe de vento e fosse submergida pelas vagas; um vidro partido, e estava completamente perdido. Não havia nada que pudesse fazer senão conservar-me à minha janela, que estava munida pelo lado de fora de arames muito fortes que a protegiam contra os acidentes que podem ocorrer em uma viagem. Vi a água entrar na minha caixa por algumas fendazinhas, que tratei de tapar o melhor possível. Ah! não tinha força para levantar a tampa da minha caixa, o que, se pudesse, faria, e aí me colocaria de preferência a ficar encerrado nessa espécie de porão.

 

Nesta crítica situação, ouvi, ou julguei ouvir, uma espécie de ruído ao lado da caixa; depressa comecei a imaginar que era puxada e de alguma forma rebocada, porque, de tempos a tempos, sentia como que um esforço, que fazia subir as ondas até à altura das janelas, deixando-me quase às escuras. Alimentei, então, algumas fracas esperanças de salvação, ainda que não pudesse imaginar de onde ela me viria. Subi para as cadeiras e aproximei a cabeça de uma pequena abertura que havia na tampa da caixa, e desatei a gritar com toda força e a pedir socorro em todas as línguas que sabia. Em seguida, atei o lenço a uma bengala que tinha e, fazendo-a sair pela abertura, manejei-a muitas vezes no espaço, a fim de que, se algum barco ou navio estivesse próximo, os marinheiros pudessem conjecturar que dentro daquela caixa estava um desgraçado mortal.

Não notei que tudo isso tivesse dado algum resultado, mas constatei que a minha caixa caminhava sempre para a frente. Ao cabo de uma hora senti que chocava contra alguma coisa dura. Temi a princípio que fosse um rochedo e fiquei muito alarmado com o caso. Ouvi, então, claramente, bulha sobre a tampa da caixa, como a de um cabo; depois, fui içado a pouco e pouco quase três pés a mais do que estava anteriormente; ao notar isso, ergui ainda a bengala e o lenço, gritando por socorro até ficar rouco. Como resposta, ouvi grandes aclamações repetidas três vezes, que me causaram transportes de alegria que não podem ser compreendidos senão por aqueles que os sentem; ao mesmo tempo ouvi andar sobre a tampa e alguém, chamando pela abertura, em inglês, perguntou:

— Está alguém aí?

— Sim! — respondi — Sou um pobre inglês reduzido pela fortuna à maior calamidade que até agora qualquer criatura tenha sofrido. Em nome de Deus, salve-me desta enxovia.

Ao que a voz me redarguiu: — Tranquilize-se, que nada tem a recear; a caixa está segura ao navio, e o carpinteiro vem já para fazer um buraco e tirá-lo daí.

Respondi que isso era desnecessário e demorava muito tempo; que bastava que qualquer tripulante pusesse o dedo no cordão a fim de levar a caixa para fora do mar, e colocá-la a bordo. Alguns dos que me ouviam falar assim, imaginavam que era um pobre insensato; outros riam; eu entretanto não me lembrava que estava tratando com homens da minha estatura e da minha força. Apareceu o carpinteiro e, dentro de poucos minutos, fez uma abertura na tampa, com a largura de três pés, e deu-me uma pequena escada pela qual subi. Entrei ao navio em um estado de grandíssima fraqueza.

 

Os marinheiros ficaram espantados e formularam-me mil perguntas, a que não tive coragem de responder. Imaginava ver-me entre pigmeus, tanto os meus olhos se haviam habituado aos objetos monstruosos que acabara de deixar; mas o capitão, M. Thomas Viletcks, homem de probidade e de mérito, oriundo da província de Salop, reparando em que eu estava caindo de fraqueza, mandou-me entrar para o seu quarto, deu-me um cordial para me fortalecer e fez-me deitar na sua cama, aconselhando-me a que repousasse, pois carecia bastante de descanso. Antes que adormecesse, disse-lhe que possuía preciosos móveis dentro da minha caixa, uma soberba maca, uma cama de campanha, duas cadeiras, uma mesa, um armário; que o meu quarto era atapetado ou, para melhor dizer, estofado de seda e algodão; que, se quisesse mandar algum homem da sua tripulação rebuscar o meu quarto, abri-lo-ia na sua presença e lhe mostraria os móveis. O capitão, ouvindo-me aqueles absurdos, julgou que eu estava louco; no entanto, para me ser agradável, prometeu mandar fazer o que lhe pedia e, subindo ao convés, mandou alguns dos seus homens revistar a caixa.

Dormi durante algumas horas, mas continuamente sobressaltado pela idéia da região que deixara e do perigo que correra.