Pormenorizo estas coisas para tornar conhecido o grande poder do hábito e do preconceito.
Em pouco tempo me habituei à mulher, à família e aos amigos; minha mulher opinou que eu não tornaria a embarcar; no entanto, a minha má estrela ordenou precisamente o contrário, como o leitor poderá verificar pelo seguimento. Entretanto, é aqui que finda a segunda parte das minhas mal-aventuradas viagens.
Parte 3
Viagem à Lapúcia, aos Balnibarbos, a Luggnagg, a Glubbdudrib e ao Japão
Capítulo I
O autor empreende terceira viagem — É aprisionado pelos piratas — Maldade de um holandês — Chega à Lapúcia.
HAVIA pouco mais de dois anos que permanecia em minha casa, quando o capitão Guill Robinson, da província de Cornualha, comandante do Boa Esperança, navio de trezentas toneladas, veio procurar-me. Fora outrora cirurgião de um navio de que ele era capitão, numa viagem ao Levante, e fui sempre muito bem tratado. O capitão, tendo conhecimento da minha chegada, fez-me uma visita em que patenteou a alegria que sentira ao ver-me de perfeita saúde; perguntou-me se eu me resolvera a ficar definitivamente em casa e disse-me que projetava fazer uma viagem às índias Orientais, para onde contava partir dentro de dois meses. Insinuou-me ao mesmo tempo que sentiria muito prazer em que eu continuasse a ser o médico de bordo; que teria um outro cirurgião e dois enfermeiros comigo; que receberia soldo dobrado; e, depois de provar que o conhecimento que eu tinha do mar era pelo menos igual ao seu, me levaria como se fosse o imediato.
Enfim, teve palavras tão elogiosas, pareceu-me tão bondoso, que me deixei levar, tendo ademais, apesar das desgraças passadas, uma grande paixão pelas viagens. A única dificuldade que previa era obter o consentimento de minha mulher que, no entanto, mo deu de boa vontade, decerto em vista das vantagens que seus filhos podiam auferir daí.
Fizemo-nos de vela em 5 de Agosto de 1708 e aportamos ao forte de S. Jorge em 1 de Abril de 1709, onde permanecemos três semanas para refrescar a nossa tripulação, que, na maioria, estava doente. Daí, dirigimo-nos a Tonquin, onde o nosso capitão resolveu demorar-se algum tempo, porque a mor parte das mercadorias que tinha vontade de adquirir só lhe podia ser entregue alguns meses depois. Para se desforrar um pouco das despesas da demora, adquiriu um barco carregado de diferentes espécies de mercadorias, de que os Tonquineses fazem um comércio ordinário com as ilhas próximas, e, embarcando aí quarenta homens, em que incluíra três da região, fez-me seu capitão e deu-me plenos poderes durante dois meses, enquanto ele negociava em Tonquin.
Ainda não havia três dias que nos tínhamos feito ao mar quando rebentou uma violenta tempestade que nos impeliu durante cinco dias para nordeste e em seguida para este. O tempo serenou um pouco, mas o vento de oeste continuava a soprar com força.
Ao décimo dia, dois piratas perseguiram-nos e logo nos aprisionaram, porque o meu navio estava tão carregado que singrava muito lentamente, sendo-nos por completo impossível manobrar de maneira a nos defender.
Os dois piratas abordaram e entraram no nosso navio à frente dos seus homens; encontrando-nos, porém, de bruços, como eu ordenara, contentaram-se em ligar-nos e, fazendo-nos guardar, principiaram a visitar o navio.
Notei entre eles um holandês que parecia ter certa autoridade, conquanto fosse apenas a do comando. Pelos nossos modos conheceu que éramos ingleses e, falando-nos na sua língua, disse-nos que nos iam ligar a todos costas com costas e lançar-nos ao mar. Como eu falasse muito bem holandês, declarei-lhe quem éramos e solicitei-lhe, em consideração do nome comum de cristãos e de cristãos reformados, de vizinhos, de aliados, que intercedesse por nós junto do capitão. As minhas palavras deram apenas como resultado irritá-lo; redobrou as ameaças e, voltando-se para os companheiros, falou-lhes em língua japonesa, repetindo amiudadas vezes a palavra cristãos.
O maior navio desses piratas era comandado por um capitão japonês, que falava um pouco a língua holandesa; dirigiu-se-me e, após algumas perguntas, a que humildemente respondi, assegurou-me que nos pouparia a vida. Fiz-lhe um grande cumprimento e, virando-me, então, para o holandês, disse-lhe que estava bastante admirado de ter encontrado mais humanidade num idólatra do que num cristão. Em breve, porém, tive de me arrepender das palavras que proferira, porque esse miserável réprobo, tendo tentado em vão persuadir os dois capitães a que me lançassem ao mar (no que não quiseram consentir por causa da promessa que um deles me havia feito), obteve que fosse ainda mais rigorosamente tratado do que se me matassem. Haviam dividido a minha gente pelos dois navios e pelo barco; quanto a mim, decidiram abandonar-me à sorte, num batel com dois remos, uma vela e víveres para quatro dias. O capitão japonês redobrou a dose e tirou das suas próprias provisões esse caridoso aumento; não quis até que me espoliassem. Desci, pois, para esse barquinho, enquanto o brutal holandês me dirigia do alto da coberta todas as injúrias e imprecações que a sua linguagem podia lhe fornecer.
Quase uma hora antes de sermos vistos pelos dois piratas, tomara altura, e vira que nos encontrávamos a quarenta e seis graus de latitude e a cento e oitenta e três de longitude. Quando me vi um pouco afastado, descobri com um óculo diferentes ilhas ao sudoeste. Então, icei a vela, pois o vento estava de feição, com desejo de aproar à mais próxima dessas ilhas, o que me deu tarefa para três horas. Esta ilha não era mais do que uma rocha, onde encontrei muitos ovos de pássaros; então, usando do meu fuzil, lancei fogo a algumas raízes e a alguns juncos marítimos para poder cozer os ovos, que foram nessa noite todo o meu sustento, estando resolvido a poupar as minhas provisões tanto quanto me fosse possível. Passei a noite nessa rocha, deitado no chão sobre as urzes que me serviram de cama, e dormi muito bem.
No dia seguinte, fiz-me de rumo para outra ilha e depois para uma terceira e para uma quarta, servindo-me às vezes dos remos; mas, para não maçar o leitor, direi apenas que ao cabo de cinco dias atingi a última ilha que vira, e que ficava ao sudoeste da primeira.
Esta ilha estava mais afastada do que eu imaginava e só pude chegar lá passadas cinco horas. Dei uma volta completa antes de poder aproar. Pondo pé em terra numa pequena baía, que era três vezes mais larga do que o meu barquinho, notei que toda a ilha não passava de um grande rochedo, com alguns intervalos em que nasciam relva e ervas muito odoríferas. Tomei as minhas pequenas provisões e, depois de haver comido um pouco, guardei o resto numas covas, de que havia grande número. Apanhei alguns ovos no rochedo e arranquei certa quantidade de juncos marítimos e ervas secas, a fim de as acender no dia seguinte para cozinhar os meus ovos, porque tinha comigo o meu fuzil, a isca e uma lente. Passei toda a noite na cova, onde colocara as minhas provisões; a minha cama eram essas ervas destinadas para o lume. Dormi pouco, porque estava mais inquieto do que cansado.
Considerei que era impossível não morrer num lugar tão miserando. Achei-me tão combalido com estas reflexões, que não tive coragem para me levantar e, antes de me sentir com forças para sair do meu esconderijo, o sol já ia muito alto; fazia um tempo magnífico e o sol estava tão ardente que era obrigado a desviar dele o rosto.
De repente, porém, escureceu de maneira diferente do que costuma acontecer quando passa uma nuvem. Voltei-me para o sol e vi um grande corpo opaco e móvel entre mim e o astro, que parecia andar de um lado para o outro.
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