Este corpo suspenso, que se me afigurava ficar a duas milhas de altura, ocultou-me o sol durante sete minutos; porém não pude observar a causa daquela escuridão. Quando este objeto chegou mais perto do sítio em que me encontrava, pareceu-me ser de uma substância sólida, cuja base era plana, unida e luzente pela reverberação do mar. Detive-me em um montículo, quase a duzentos passos da margem, e vi esse corpo descer e aproximar-se de mim, a uma milha de distância talvez. Tomei, então, o meu telescópio, e descobri grande número de pessoas em movimento, pessoas que me olhavam e se olhavam umas para as outras.

 

O instinto natural da vida fez-me nascer alguns sentimentos de alegria e de esperança, pois que esta aventura poderia ajudar-me a sair do desgraçado estado em que me encontrava; ao mesmo tempo, porém, o leitor não pode imaginar a estupefação que me causou a vista daquela espécie de ilha aérea, habitada por homens que tinham a arte e o poder de a levantar, de a baixar e de a fazer andar à sua vontade; não tendo, contudo, o espírito de filosofar sobre tão estranho fenômeno, contentei-me em observar para que lado é que a ilha girava, porque me pareceu parar algum tempo. Entretanto, aproximou-se do lado em que eu estava e pude descortinar muitos terraços grandes e escadarias de espaço a espaço para comunicarem umas com outras.

Sobre o terraço mais baixo, vi muitos homens que pescavam aves à linha e outros que olhavam. Fiz-lhes sinal com o chapéu e com o lenço; e, quando os vi mais perto, gritei com toda a força dos meus pulmões. Tendo, então, olhado com a máxima atenção vi uma enorme multidão apinhada no ponto que me ficava em frente. Descobri, pelas suas posições, que me viam, embora me não tivessem respondido. Reparei, então, nuns seis homens que subiam apressadamente ao cume da ilha, e supus que fossem enviados a algumas pessoas de autoridade para receberem ordens sobre o que deviam fazer nesta ocasião.

 

A multidão dos insulares aumentou e, em menos de meia hora, a ilha aproximou-se de tal maneira, que mediaram apenas uns cem passos de distância entre ela e mim. Foi, então, que adotei várias posições humildes e comoventes e dirigi várias súplicas; não obtive resposta alguma; os que pareciam estar mais próximos, a julgar pelas suas roupas, eram pessoas de distinção.

Por fim, um deles fez ouvir a sua voz numa linguagem clara, polida e muito suave, cujo timbre se aproximava do italiano; foi também em italiano que respondi, imaginando que o som e a acentuação desta língua seriam mais gratos aos seus ouvidos do que qualquer outro idioma. Este povo compreendeu o meu pensamento; assim, fizeram-me sinal para que descesse do rochedo e que me encaminhasse para a margem. Então, da ilha volante, baixando-se a uma altura conveniente, deitaram-me de cima do terraço uma corrente com uma pequena cadeira suspensa, sobre a qual me sentei, sendo, num momento, içado por meio de um cadernal.


Capítulo II


Caráter dos Lapucianos — Opinião a respeito dos seus sábios, do seu rei e da corte — Recepção que foi feita ao autor — Os receios e as inquietações dos habitantes — caráter das mulheres lapucianas.

Assim que cheguei, encontrei-me rodeado de uma multidão que me observava admirada e que eu contemplei do mesmo modo, não tendo visto nunca tão singular raça de mortais tanto no rosto, como nos hábitos e nas maneiras; inclinavam a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda; tinham um olho voltado para dentro e outro para o sol. As suas roupas eram semeadas de figuras do sol, da lua e das estrelas e cheios de rabecas, de flautas, de harpas, de trombetas, de guitarras, de alaúdes e de muitos outros instrumentos musicais desconhecidos na Europa. Vi em torno deles muitos criados armados de bexigas, ligadas com um malho na ponta de um pequeno pau, onde havia certa quantidade de ervilhinhas e seixinhos; batiam de tempos a tempos com essas bexigas na boca ou nas orelhas daqueles que lhes ficavam mais próximos e não pude perceber o motivo de tal hábito. A inteligência deste povo parecia tão distraída e tão mergulhada em profunda meditação, que ninguém podia falar nem estar com atenção ao que se lhe dizia sem o auxílio daquelas ruidosas bexigas, com que se lhe batia na boca ou nas orelhas, para o despertar. Esta era a razão por que as pessoas que possuíam certos meios, mantinham um criado, que lhes servia de monitor e sem o qual nunca saíam.

 

A ocupação deste personagem, quando duas ou três pessoas se encontravam juntas, consistia em bater habilmente com a bexiga na boca daquele a quem se dirigia o discurso. O monitor acompanhava sempre o seu amo quando ele saía, e era obrigado a dar-lhe, de quando em quando, com a bexiga nos olhos, porque, sem isso, os seus grandes devaneios pô-lo-iam muita vez em perigo de cair em algum precipício, ou de bater com a cabeça em algum poste, de empurrar os outros na rua, ou de ser lançado em algum riacho.

Fizeram-me subir ao cume da ilha e entrar no palácio do rei, onde vi Sua Majestade num trono, cercado de personagens da primeira distinção. Em frente do trono estava uma grande mesa cheia de globos, esferas e de instrumentos matemáticos de toda espécie. O rei não deu pela minha entrada, embora a multidão que me acompanhasse fizesse bastante alarido; estava, então, entregue à solução de um problema, e paramos defronte dele durante uma hora precisa, à espera de que Sua Majestade acabasse a sua operação. Havia junto dele dois pajens empunhando bexigas, e um deles, quando Sua Majestade concluiu o trabalho, bateu-lhe docemente e com respeito na boca, enquanto o outro lhe bateu na orelha direita. O rei pareceu, então, despertar como que em sobressalto e, circunvagando a vista por mim e pela gente que me rodeava, recordou-se do que lhe haviam dito acerca da minha chegada, poucos momentos antes; dirigiu-me algumas palavras e logo um homem, armado de uma bexiga, se aproximou de mim e bateu-me com ela na orelha direita; fiz-lhe, porém, sinal de que era desnecessário ter esse trabalho, o que deu ao rei e a toda a corte uma elevada idéia acerca da minha inteligência. O soberano fez-me algumas perguntas, a que respondi sem que um e outro nos compreendêssemos. Em seguida me conduziram a um aposento onde me serviram o jantar. Quatro pessoas de distinção me deram a honra de se sentar perto de mim; tivemos dois serviços, cada um de três pratos. O primeiro era composto de uma perna de carneiro cortada em triângulo equilátero; de uma peça de boi sob a forma de um rombóide e de um chouriço de sangue sob a de um ciclóide. O segundo serviço foi constituído por dois pratos semelhando rabecas, salsichas e lingüiças, que pareciam flautas e oboés, e um fígado de veado que tinha a aparência de uma harpa. Os pães, que nos serviram, tinham a configuração de cones, de cilindros e de paralelogramos.

 

Depois do jantar, um homem veio ter comigo da parte do rei, com uma caneta, tinta e papel, e fez-me compreender, por sinais, que tinha ordem de me ensinar a língua do país. Estive com ele perto de quatro horas, durante as quais escrevi em quatro colunas um grande número de palavras com a tradução em frente. Ensinou-me também algumas frases curtas, cujo sentido me deu a conhecer, dizendo-me o que elas significavam. O meu professor mostrou-me em seguida, num dos seus livros, a figura do sol, da lua, das estrelas, do zodíaco, dos trópicos e dos círculos polares, dizendo-me o nome de tudo isso, assim como de toda a espécie de instrumentos de música, com os termos desta arte relativos a cada instrumento.