Quando acabou a lição, compus para meu uso particular um pequeno e bonito dicionário de todos os vocábulos que aprendera e, em poucos dias, graças à minha feliz memória, soube sofrivelmente a língua lapuciana.

Na manhã seguinte compareceu um alfaiate, que me tirou medidas. Os alfaiates dessa região exercem o seu mister de maneira diferente da dos outros países da Europa. Tirou primeiramente medida da altura do meu corpo com um quadrante e depois com régua e compasso, tendo medido a circunferência e toda a proporção dos membros superiores, fez o cálculo em um papel e, ao fim de seis dias, trouxe-me uma roupa muito mal feita; desculpou-se, dizendo-me que tivera a infelicidade de enganar-se nos cálculos.

 

Nesse dia, Sua Majestade ordenou que fizessem avançar a sua ilha para Lagado, que é a capital do seu reino em terra firme, e depois para certas cidades e aldeias, a fim de receber os requerimentos dos seus súditos. Para esse efeito deixou cair uma porção de cordéis com uma bola de chumbo na extremidade, com o fim de que o seu povo atasse aí os seus requerimentos, que eram puxados depois e que no ar davam a aparência de papagaios.

Os conhecimentos que eu possuía acerca de matemáticas auxiliaram-me muito para compreender o seu modo de falar e as metáforas, extraídas na sua maioria das matemáticas e da música, porque sei também um pouco desta arte. Todas as suas idéias não passavam de linhas e de figuras, e até a sua galanteria era toda geométrica. Se, por exemplo, queriam gabar a beleza de uma donzela, diziam que os seus dentes brancos eram belos e perfeitos paralelogramos; que as sobrancelhas eram um segmento encantador, ou uma bela porção de círculos; que os olhos formavam uma admirável elipse; que o colo era ornado de dois globos acíntotas. O seno, a tangente, a linha reta, a linha curva, o cone, o cilindro, a oval, a parábola, o diâmetro, o raio, o centro, o ponto, são entre eles termos que entram na linguagem do amor.

 

As casas eram pessimamente construídas; e a razão é que nesse país se despreza a geometria prática como uma coisa vulgar e mecânica. Nunca vi povo tão tolo, tão mesquinho e tão inábil em tudo quanto se relacione com as ações comuns e o modo de proceder. São, além disso, os piores argumentadores do mundo, sempre dispostos a contradizer, exceto quando pensam com justiça, o que lhes acontece raramente, e, então, calam-se; não sabem o que seja imaginativa, invenção, retratos, e não têm sequer termos na sua língua que exprimam estas coisas. Deste modo todas as suas obras, incluindo as poesias, parecem teoremas de Euclides.

Muitos deles, principalmente aqueles que se dedicam à astronomia, caem na astrologia judiciária, embora não se atrevam a confessá-lo publicamente; mas o que eu encontrei de mais surpreendente, foi a tendência, que tinham, para a política, e a curiosidade pelos comentários; falavam continuamente dos negócios de Estado e faziam sem cerimônia alguma o seu juízo acerca de tudo quanto se passava nos gabinetes dos príncipes. Notei, muitas vezes, o mesmo caráter nos nossos matemáticos europeus, sem nunca ter podido encontrar a menor analogia entre os matemáticos e a política, salvo se se imagina que, assim como um círculo menor tem tantos graus como o círculo maior, aquele que se encontra apto para raciocinar sobre um círculo traçado num papel, possa do mesmo modo fazê-lo sobre a esfera do mundo; porém não será antes o defeito natural de todos os homens, que se dão o prazer de falar e de raciocinar sobre o que menos percebem?

 

Este povo parece sempre inquieto e assustado. Aquilo que não conseguiu nunca impedir o repouso dos outros homens é o contínuo assunto das suas queixas e dos seus temores; ficam apreensivos com a alteração dos corpos celestes; por exemplo: que a terra, pelas contínuas aproximações do sol, não seja por fim devorada pelas chamas deste terrível astro; que esse archote da natura não se encontre a pouco e pouco coberto de crosta pela espuma e não venha a apagar-se completamente para os mortais; temem que o próximo cometa que, consoante os seus cálculos, aparecerá dentro de trinta e um anos, com uma pancada da sua cauda fulmine a terra e a reduza a cinzas; receiam ainda que o sol, à força de espalhar os raios por toda parte, venha a gastar-se e a perder completamente a sua substância. São estes os receios e as inquietações que lhes tiram o sono e os privam de toda a espécie de prazeres; assim, logo que se encontram de manhã, as primeiras palavras que trocam entre si é referindo-se a ele, perguntando como passa, e em que estado nasceu e desapareceu no ocaso.

As mulheres desta ilha são muito vivas; desprezam os maridos e são muito amáveis com os estrangeiros, de que há sempre um considerável número na comitiva da corte; é também entre eles que as damas da corte escolhem os seus amantes. O que há de desagradável nisto, é que elas costumam entregar-se sem rebuço algum e com certa segurança, porque os maridos estão tão absorvidos nas suas especulações geométricas, que se lhes acaricia as mulheres na sua presença sem que eles dêem por isso, contanto que o seu monitor lá não esteja para lhes bater com a bexiga.

As donzelas e as mulheres casadas sentem grande desgosto em viverem encerradas naquela ilha, embora seja o mais delicioso ponto da terra e vivam entre riqueza e magnificências. Podem ir para onde quiserem, na ilha, mas almejam correr mundo e dirigir-se à capital, onde lhes é proibido ir sem autorização do rei, o que nunca conseguiram obter porque os maridos têm experimentado algumas vezes o desgosto de não as tornar a ver. Ouvi contar que uma alta dama da corte, casada com o primeiro ministro, o homem mais perfeito e rico da corte, que a amava loucamente, veio a Lagado sob o pretexto de que estava doente, e aí permaneceu oculta durante alguns meses até que o soberano a mandou procurar; foi encontrada num estado lamentável, numa péssima casa, tendo empenhado os seus vestidos para manter um lacaio velho e feio que todos os dias a espancava; livraram-na dele muito contra vontade sua e, ainda que o marido a recebesse com bondade, fazendo-lhe mil carícias e dando-lhe vãs repreensões sobre o seu procedimento, pouco depois tornou a fugir com todas as jóias e pedrarias, para ir ter novamente com esse indigno amante; e nunca mais se ouviu falar nela.

 

O leitor talvez tome esta narrativa por um caso europeu, ou mesmo inglês; peço-lhe, porém, que considere que os caprichos da espécie feminina não se limitam apenas a uma parte do mundo, nem a um clima único; em qualquer ponto do globo terrestre são os mesmos.


Capítulo III


Fenômeno explicado pelos filósofos e astrônomos modernos — Os Lapucianos são grandes astrônomos — De como o rei logra apaziguar as sedições.

Solicitei licença do soberano para ver as curiosidades da ilha; concedeu-me e ordenou a um dos seus cortesãos que me acompanhasse. Quis principalmente saber em que consistia o segredo natural ou artificial que causava os diversos movimentos de que vou dar ao leitor uma nota exata e filosófica.

A ilha volante é perfeitamente redonda; o seu diâmetro é de sete mil e oitocentos e sete toesas e meia, isto é, quase quatro mil passos, e, por conseguinte, contém aproximadamente dez mil acres. O fundo desta ilha ou a superfície inferior, tal como parece a quem a vê por baixo, é como um largo diamante, polido e talhado regularmente, que reflete a luz a quatrocentos passos. No subsolo há muitos minerais, situados seguindo a fila ordinária das minas, e por cima existe um terreno fértil de dez a doze pés de profundidade.

A inclinação das partes da circunferência para o centro da superfície superior é a causa natural de todas as chuvas e orvalhos que caem na ilha serem conduzidos por pequenos regatos para o meio, onde se juntam em quatro grandes tanques, tendo cada um deles quase meia milha de circuito. A duzentos passos de distância do centro desses tanques, a água é continuamente atraída e evaporada pelo sol durante o dia, o que impede o extravasamento. Demais, como depende do poder real erguer a ilha acima da região das nuvens e dos vapores terrestres, pode, quando lhe apraz, impedir a queda da chuva e do orvalho, o que não está no poder de nenhum outro potentado da Europa, que, não dependendo de pessoa alguma, depende sempre da chuva e do bom tempo.

 

No centro da ilha existe um buraco com perto de vinte e cinco toesas de diâmetro, pelo qual descem os astrônomos a um largo zimbório que, por este motivo, é chamado Flandona gagnole, ou Cava dos Astrônomos, situada a uma profundidade de cinqüenta toesas acima da superfície superior do diamante. Nesta cava havia vinte lâmpadas sempre acesas que, pela reverberação do diamante, espalham uma grande luz por todos os lados. Este local é guarnecido de sextantes, de quadrantes, de telescópios, de astrolábios e de outros instrumentos astronômicos; a maior curiosidade, porém, de que depende até o destino da ilha, é uma pedra magnética de prodigioso tamanho, talhada em forma de naveta de tecelão.

Tem o comprimento de três toesas e, na sua maior espessura, mede pelo menos toesa e meia. Este ímã está suspenso por um grosso eixo giratório de diamante, que passa pelo meio da pedra, sobre a qual gira, e que está colocado com tanta precisão que um fraco impulso pode fazê-la mover; está rodeada por um círculo de diamante com a configuração do cilindro cavado, com quatro pés de profundidade, com muitos pés de espessura e com seis toesas de diâmetro, colocado horizontalmente e mantido por oito pedestais, todos de diamante, tendo cada um a altura de três toesas. Do lado côncavo do círculo há uns entalhes profundos de doze polegadas, em que estão colocadas as extremidades do eixo, que gira quando é preciso.

Força alguma pode deslocar a pedra, porque o círculo e os pés do círculo são de uma só peça com o corpo do diamante que forma a base da ilha.

É por meio deste ímã que a ilha se levanta, se baixa e muda de lugar; porque, em relação a este ponto da terra em que reside o monarca, a pedra é munida, em um dos seus lados, de um poder atrativo e no outro de um poder repulsivo. Assim, quando o ímã está voltado para a terra pelo seu pólo amigo, a ilha desce; mas, quando o pólo inimigo está voltado para a mesma terra, a ilha sobe. Quando a posição da terra obliqua, o movimento da ilha é igual, porque, nesse ímã, as forças agem sempre em linha paralela à sua direção; é pelo movimento oblíquo que a ilha é conduzida às diferentes partes dos domínios do soberano.

 

Este monarca seria o príncipe mais absoluto do universo, se pudesse arranjar ministros que lhe obedecessem em tudo, mas estes, possuindo terrenos em baixo, no continente, e considerando que o furor dos príncipes é passageiro, não se importam de causar prejuízo a si próprios oprimindo a liberdade dos seus compatriotas.

Se alguma cidade se revolta ou recusa pagar impostos, o rei tem duas maneiras de dominá-la. A primeira e mais moderada é estacionar a sua ilha por cima da cidade rebelde e das terras próximas; dessa maneira priva a região do sol e do orvalho, o que causa doenças e mortandade; mas, se o crime o merece, atira-lhes grandes pedras do alto da ilha, de que só podem livrar-se refugiando-se nos celeiros e nos subterrâneos, onde passam o tempo a beber enquanto os telhados das suas casas são despedaçados. Se continuam temerariamente na sua teimosia e na sua revolta, o rei recorre então ao último remédio, que é deixar cair a ilha a prumo sobre as suas cabeças, o que esmaga todas as casas e todos os habitantes. No entanto, o príncipe raramente lança mão desse temível extremo, que os ministros não se atrevem a aconselhar-lhe, visto que esse violento processo os tornaria odiosos ao povo e prejudicaria também a eles, que possuem os seus bens no continente, porque a ilha só pertence ao rei, que também apenas possui a ilha como domínio.

 

Há ainda uma outra razão mais forte pela qual os reis deste país fogem sempre de aplicar esse último castigo, salvo num caso de absoluta necessidade; é porque, se a cidade que se quer destruir fica situada perto de alguns rochedos altos (porque os há neste país, assim como em Inglaterra, perto das grandes cidades que foram expressamente construídas junto dessas rochas, para se preservarem das cóleras régias) ou se tem grande número de campanários e pirâmides de pedra, a ilha real, com a sua queda, podia quebrar-se.