Os velhos são mantidos por custeio público numa casa chamada: hospital dos imortais pobres. Um imortal de oitenta anos já não pode exercer um emprego ou função alguma; não pode negociar, não pode contratar, não pode comprar nem vender e o seu próprio testemunho não é reconhecido em justiça. Quando, porém, atingem noventa anos, ainda é pior: todos os dentes e cabelos caem; perdem o paladar e bebem e comem sem prazer algum; perdem a noção das coisas mais fáceis de reter, e esquecem o nome dos amigos e às vezes o próprio. Torna-se-lhes por este motivo inútil entreterem-se com a leitura, pois que, quando querem ler uma frase de quatro palavras, esquecem as duas primeiras, enquanto lêem as duas últimas. Pelo mesmo motivo lhes é impossível conversar com alguém. Além disto, como a língua deste país está sujeita a freqüentes mudanças, os struldbruggs nascidos num século têm muito trabalho em compreender a linguagem dos homens nascidos noutro século, e são sempre estrangeiros na sua pátria.
Tais foram os pormenores que me forneceu a respeito dos imortais desse país, pormenores que me surpreenderam em extremo. Em seguida, mostrou-me uns seis, e confesso que nunca vi nada mais feio e mais desagradável; as mulheres, sobretudo, eram horrorosas; imaginei ver espectros.
O leitor decerto compreenderá que perdi, então, toda a vontade de tornar-me imortal por semelhante preço. Fiquei vexadíssimo com as loucas imaginações a que me entregara sobre o sistema de uma vida eterna neste baixo mundo.
O rei, sabendo da conversa que eu mantivera com aqueles de quem falei, riu muito das minhas idéias sobre a imortalidade e a inveja que eu sentira pelos struldbruggs. Em seguida, perguntou-me muito a sério se eu queria levar comigo dois ou três exemplares deles para o meu país, para curar os meus compatriotas do desejo de viver e do medo de morrer. No íntimo, sentiria muito prazer em que me tivesse feito esse presente; mas por uma lei fundamental do reino é proibido aos imortais sair dele.
Capítulo X
O autor parte da ilha de Luggnagg para se dirigir ao Japão, onde embarca em um navio holandês — Chega a Amsterdam e daí passa para a Inglaterra.
Suponho que tudo o que tenho contado acerca dos struldbruggs não haja enfastiado o leitor. Creio que não são coisas vulgares, gastas e batidas, que se encontrem em todas as relações de viagens; pelo menos, posso assegurar que nada achei de igual nas que li. Em todo o caso, se são coisas reditas e já conhecidas, peço considerar que viajantes, sem se copiarem uns aos outros, podem muito bem contar as mesmas coisas, quando visitam os mesmos países.
Como existe um grande comércio entre o reino de Luggnagg e o império do Japão, é de crer que os autores japoneses não esquecessem de mencionar nos seus livros os struldbruggs. Mas a permanência que fiz no Japão foi muito curta e, por não possuir, além disto, tintura alguma da linguagem japonesa, não pude saber ao certo se esse assunto fora tratado nos seus livros. Algum holandês poderá talvez um dia dizer-nos o que há sobre tal assunto.
O rei de Luggnagg, tendo muitas vezes, embora inutilmente, insistido comigo para ficar nos seus Estados, teve por fim a bondade de me conceder liberdade para sair e fez até a honra de me dar uma carta de recomendação, escrita por seu próprio punho, para Sua Majestade, o imperador do Japão. Ao mesmo tempo presenteou-me com quatrocentas e quarenta e quatro peças de ouro, de cinco mil quinhentas e cinco pérolas e de oitocentos e oitenta e oito mil, cento e oitenta e oito grãos de uma espécie de arroz muito rara. Estas espécies de números, que se multiplicam por dez, agradam muito ao povo desse país.
Em sete de Maio de 1709 despedi-me, com todas as cerimônias, de Sua Majestade, e disse adeus a todos os amigos que deixava na corte. Este príncipe fez-me conduzir por um destacamento dos seus guardas até ao porto de Glanguenstald, situado a sudoeste da ilha. Ao cabo de seis dias encontrei um navio pronto a transportar-me ao Japão; embarquei e, após a nossa viagem, que durou cinqüenta dias, desembarcamos num pequeno porto chamado Xamoschi, ao sudoeste do Japão.
Mostrei primeiramente aos comissários da Alfândega a carta com que tinha a honra de ser apresentado pelo rei de Luggnagg a Sua Majestade nipônica; conheceram logo o selo de Sua Majestade luggnaggiana, cujo sinete representava um rei amparando um pobre aleijado e ajudando-o a andar.
Os magistrados da cidade, sabedores de que eu era portador daquela augusta carta, trataram-me como ministro e forneceram-me uma carruagem para me transportar a Yedo, que é a capital do Império. Aí, fui recebido em audiência por Sua Majestade imperial e tive a honra de lhe apresentar a minha carta, que abriu na presença de todos com grande cerimonial, e que Sua Majestade fez logo explicar pelo seu intérprete que lhe pedisse qualquer graça que, em consideração para com o seu muito querido irmão, o rei de Luggnagg, ma concederia imediatamente.
Este intérprete, que era ordinariamente empregado nos negócios do comércio com os holandeses, conheceu facilmente pelo meu aspecto que eu era europeu e, por esse motivo, traduziu-me em língua holandesa as palavras de Sua Majestade. Respondi que era negociante da Holanda; que naufragara num mar afastado; que desde então caminhara muito por terra e por mar para chegar a Luggnagg e daí ao império do Japão, onde sabia encontrar os holandeses meus compatriotas que comerciavam, o que me podia proporcionar ocasião de voltar para a Europa; suplicava, pois, a Sua Majestade que me transferisse com segurança para Nangasac. Tomei, ao mesmo tempo, a liberdade de pedir-lhe uma outra mercê; foi que, por consideração para com o rei de Luggnagg, que me dava a honra de proteger-me, de muito boa vontade me dispensasse da cerimônia que se fazia praticar aos do meu país e não me obrigasse a calcar aos pés o crucifixo, pois viera ao Japão para passar à Europa e não para traficar.
Quando o intérprete expôs a Sua Majestade nipônica esta derradeira mercê que pedia, pareceu surpreendido e respondeu que era o primeiro homem da minha terra a quem semelhante escrúpulo acudia ao espírito, o que o fazia desconfiar de que eu não fosse realmente holandês, como eu garantira, e fazia antes supor-me cristão. No entanto, o imperador, gostando da razão que eu alegara e olhando principalmente a recomendação do rei de Luggnagg, houve por bem, por bondade, condescender à minha fraqueza e singularidade, contanto que eu guardasse todas as conveniências para salvar as aparências; disse que daria ordem aos oficiais encarregados de fazer observar este uso para que me deixassem passar, fazendo de conta que não haviam reparado em mim. Acrescentou que era de interesse meu calar-me sobre o caso, porque infalivelmente os holandeses, meus compatriotas, me apunhalariam na viagem se viessem a saber a dispensa que obtivera e o injurioso escrúpulo que tivera em imitá-los.
Dei os meus mais humildes agradecimentos a Sua Majestade por este singular favor, e, assim que algumas tropas estavam prontas para marchar para Nangasac, o oficial teve ordem para me conduzir a essa cidade, com instruções secretas acerca do crucifixo.
Aos nove dias do mês de Junho de 1709, após uma longa e penosa viagem, arribei a Nangasac, onde encontrei uma companhia de holandeses que tinha partido de Amsterdam para negociar em Amboina e que estava pronta para embarcar, no seu regresso, num grande navio de quatrocentas e cinqüenta toneladas. Permanecera muito tempo na Holanda, pois fizera os meus estudos em Leyde e falava muito bem a língua desse país. Dirigiram-me diversas perguntas acerca das minhas viagens, a que respondi conforme me aprouve. Mantive perfeitamente, perante eles, a linha de holandês; citei amigos e parentes nas Províncias-Unidas e apresentei-me como natural de Gelderland.
Estava disposto a dar ao capitão do navio, que era um certo Theodoro Vangrult, tudo quanto lhe apetecesse pedir-me pela minha passagem; sabendo, porém, que eu era cirurgião, contentou se com metade do preço vulgar, com a condição de que exerceria a bordo o meu mister.
Antes de embarcarmos, alguns da tropa tinham-me perguntado amiudadamente se eu traficara, ao que eu respondi, de um modo geral, que fizera tudo quanto era necessário. Contudo, um patife audacioso lembrou-se de mostrar-me maldosamente ao oficial japonês, dizendo: não calcou aos pés o crucifixo. O oficial, que tinha secretas ordens para nada exigir de mim, aplicou-lhe vinte bastonadas dadas nas costas, de maneira que mais ninguém se atreveu, após essa cena, a fazer-me perguntas sobre tal assunto.
Na nossa viagem nada houve que mereça ser referido. Fizemo-nos de vela, com vento de feição, e tomamos água no Cabo da Boa Esperança em 16 de Abril de 1710; desembarcamos em Amsterdam, onde me demorei pouco tempo e onde depressa embarquei para a Inglaterra. Que prazer não foi o meu ao tornar a ver a minha querida pátria, após cinco anos e meio de ausência! Encaminhei-me diretamente para Redriff, onde encontrei minha mulher e meus filhos de perfeita saúde.
Parte 4
Viagem ao país dos Huyhnhnms
Capítulo I
O autor empreende ainda uma viagem na qualidade de capitão de navio — A sua tripulação insubordina-se, prende-o, acorrenta-o e põe-no em terra num ponto desconhecido — Descrição dos Yahus — Dois Huyhnhnms vêm ter com ele.
PASSEI cinco magníficos meses na doce companhia de minha mulher e de meus filhos e posso dizer que, então, era feliz, se pudesse verificar que o era; fui, porém, desgraçadamente tentado a fazer ainda nova viagem, principalmente quando me foi oferecido o orgulhoso título de capitão a bordo do Aventura, navio mercante de trezentas e cinqüenta toneladas.
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