O animal, sentindo-se magoado, desatou a fugir e a gritar de tal maneira que atraiu a atenção de uns quarenta animais da sua espécie, que correram para mim fazendo horríveis caretas. Corri para uma árvore, onde me encostei, mantendo-me em guarda com o sabre; logo saltaram aos ramos das árvores e começaram a estercar em cima de mim. Repentinamente puseram-se todos em fuga.
Então, deixei a árvore e continuei o meu caminho, ficando muito surpreendido de que um súbito terror lhes tivesse feito fugir; mas, olhando para a esquerda, vi um cavalo trotando gravemente no meio de um campo; fora a presença deste cavalo que fizera dispersar tão depressa o bando que me assaltara. Aproximando-se de mim, o cavalo estacou, recuou e, em seguida, olhou-me fixamente, parecendo um pouco espantado; examinou-me por todos os lados, andando por várias vezes em volta de mim.
Quis andar para a frente, mas colocou-se diante de mim na estrada, olhando-me meigamente e sem praticar violência alguma. Examinámo-nos mutuamente durante certo tempo; por fim, atrevi-me a colocar-lhe a mão sobre o pescoço, acariciando-o, assobiando e falando à maneira dos palafreneiros, quando querem acariciar um cavalo; mas o animal, soberbo, fazendo pouco da minha delicadeza e da minha bondade, carregou a vista e levantou orgulhosamente uma das suas patas dianteiras para me obrigar a retirar a minha mão familiar demais. Ao mesmo tempo, desatou a relinchar três vezes, mas com uns sons tão variados, que comecei a crer que falava uma linguagem que lhe era própria e que tinha uma espécie de sentido ligado aos seus relinchos.
Imediatamente apareceu um outro cavalo, que cumprimentou o primeiro muito delicadamente; ambos se trataram muito bem e começaram a relinchar de cem diferentes modos, que pareciam formar sons articulados; em seguida, deram alguns passos juntos, como se quisessem conferenciar sobre qualquer assunto; iam e vinham, marchando gravemente a par, semelhantes a pessoas que deliberam sobre coisas importantes; no entanto, não tiravam os olhos de cima de mim, como se temessem que eu tentasse a fuga.
Surpreendido por ver animais portarem-se assim, pensei de mim para comigo: — Visto que neste país os animais raciocinam assim, é porque os homens são de uma suprema inteligência.
Esta reflexão incutiu-me tanta coragem que resolvi avançar por essa região até que descobrisse qualquer casa e encontrasse algum habitante, o que deixara ali os dois cavalos soltos; um deles, porém, que era ruço-malhado, vendo que me ia embora, começou a relinchar junto de mim de maneira tão expressiva que julguei perceber o que ele queria; voltei-me e acerquei-me dele, dissimulando o meu embaraço e a minha perturbação tanto quanto me era possível, porque, no fundo, não sabia em que daria tudo isso.
Os dois cavalos chegaram-se mais perto e puseram-se como que a examinar-me o rosto e as mãos. O meu chapéu parecia surpreendê-los, assim como a fazenda da minha roupa. O ruço-malhado pôs-se a gabar a minha mão direita, parecendo encantado, e a macieza e a cor da minha pele; mas apertou-ma tanto entre o casco e a ranilha que não pude deixar de gritar com toda a força dos meus pulmões, o que me atraiu mil outras carícias, cheias de amizade. Os meus sapatos e as minhas meias inquietaram-nos, farejaram-nos e apalparam-nos por diversas vezes e fizeram sobre este assunto muitos gestos parecidos com os de um filósofo que tenta explicar um fenômeno.
Enfim, a atitude e as maneiras desses dois animais pareceram-me tão racionais, tão prudentes, tão judiciosas, que concluí de mim para mim que talvez fossem encantadores que se haviam transformado em cavalos com qualquer desígnio e que, encontrando um estranho no seu caminho, tinham querido divertir-se um pouco à sua custa, ou tinham ficado atônitos com as suas feições, roupas e maneiras. Foi por isso que tomei a liberdade de falar-lhes nestes termos: -Senhores cavalos, se são feiticeiros, como tenho motivos para crer, decerto compreendem todas as línguas; assim, tenho a honra de lhes dizer, na minha, que sou um pobre inglês que, por fatalidade, naufraguei nestas costas e peço ou a um ou a outro que, se são realmente cavalos, me deixem subir para a garupa, a fim de descortinar alguma aldeia ou casa onde possa recolher-me. Como reconhecimento, ofereço-lhes este punhal e este bracelete.
Os dois animais pareceram ouvir o meu discurso com atenção e, quando acabei, puseram-se a relinchar cada um por sua vez, voltados um para o outro. Compreendi então, claramente, que aqueles relinchos eram significativos e encerravam palavras com que, talvez, se pudesse fazer um alfabeto tão claro como o dos chineses.
Ouvi-os repetir várias vezes a palavra Yahu, de que distinguia o som sem lhe perceber o sentido, ainda que, enquanto os dois cavalos conversavam, tentasse compreender-lhe o significado. Quando acabaram de falar, desatei a gritar com toda a força: Yahu! Yahu! tentando imitá-los. Isto pareceu surpreendê-los em extremo, e então o ruço-malhado, repetindo duas vezes a mesma palavra, pareceu querer ensinar-me o modo de pronunciá-la. Repeti-a após ele o melhor que me foi possível e quis me parecer que, embora estivesse muito longe da perfeição, da acentuação e da pronúncia, tinha, no entanto, feito algum progresso. O outro cavalo, que era baio, ao que me pareceu, quis também ensinar-me uma outra palavra muito mais difícil de pronunciar e que, sendo reduzida à ortografia inglesa, pode ser escrita assim: huyhnhnm. Não me saí tão bem da pronúncia desta como da primeira, mas depois de alguns ensaios já ia melhor, e os dois cavalos notaram que eu era inteligente.
Após alguns momentos de conversa (decerto a meu respeito) despediram-se com o mesmo cerimonial com que se tinham acercado de mim. O baio fez-me sinal para caminhar adiante dele, o que julguei a propósito fazer enquanto não encontrasse outro guia. Como caminhasse muito vagarosamente, pôs-se a relinchar, hhuum, hhuum. Compreendi o seu pensamento e dei-lhe a entender, conforme pude, que estava muito cansado e me custava muito a andar. Percebendo-o, deteve-se caridosamente para me deixar descansar.
Capítulo II
O autor é levado à habitação de um huyhnhnm; como é recebido — Qual era o alimento dos huyhnhnms — Embaraços do autor para encontrar com que se alimentar.
Depois de ter palmilhado quase três milhas, chegamos a um sítio onde havia uma grande casa de madeira muito baixa e coberta de palha. Comecei logo a tirar da algibeira as pequenas lembranças, que destinava aos donos desta casa, para ser nela recebido mais bondosamente. O cavalo teve a delicadeza de me fazer entrar, primeiro, numa grande quadra muito limpa, onde, como único mobiliário, havia uma manjedoura e uma gamela.
Vi três cavalos com duas éguas, que não comiam, e que estavam sentados nos jarretes. Entretanto, o ruço-malhado chegou, e, entrando, começou a relinchar em tom de dono da casa. Atravessei com ele duas outras salas planas; na última, o guia fez-me sinal para esperar e passou a outro aposento que ficava próximo. Imaginei, então, de mim para mim, que era preciso que o dono da casa fosse uma pessoa nobre, pois assim me fazia esperar em cerimônia na antecâmara. Ao mesmo tempo, porém, não podia conceber que um homem de distinção tivesse um cavalo como criado de quarto. Temi, então, estar doido, e que as minhas fatalidades me tivessem feito perder completamente a inteligência. Olhei atentamente em volta de mim e pus-me a examinar a antecâmara que estava pouco mais ou menos mobilada como a primeira sala. Abri muito os olhos, fitei fixamente tudo o que me cercava e via sempre a mesma coisa.
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