Estas circunstâncias, reunidas às bebidas que me deram, predispuseram-me para dormir; o sono durou oito horas seguidas, em virtude do imperador ter ordenado aos médicos que me deitassem drogas soporíficas no vinho.
Enquanto dormia, o imperador de Lilipute, (tal era o nome desse país), ordenou que me conduzissem ao lugar em que se encontrava. Esta resolução parecerá talvez arrojada e perigosa, e estou certo de que soberano algum da Europa a levaria a bem; no entanto, a meu ver, era um desejo igualmente prudente e perigoso, porque, no caso em que esse povo tivesse tentado matar-me com as suas lanças e as suas flechas enquanto dormia, seria imediatamente despertado à primeira sensação de dor, o que excitaria a minha cólera e aumentaria as minhas forças a tal ponto, que me encontraria em estado de quebrar o resto dos cordões e, após isso, como me não pudessem resistir, seriam todos esmagados por mim.
Fizeram trabalhar à pressa cinco mil carpinteiros e engenheiros para construir um carro: era uma viatura com o tamanho de três polegadas, com sete pés de comprimento por quatro de largura, e com vinte e duas rodas. Assim que o deram por concluído, conduziram-no ao lugar em que me encontrava. A principal dificuldade, porém, estava em levantar-me e colocar-me naquele carro. Com esse fito, fincaram no chão oitenta varas, tendo cada uma dois pés de altura; cada uma delas era munida, na ponta, de uma roldana pela qual passavam cordas muito fortes, da grossura de uma guita, com ganchos que iam prender-se em cintos que os operários haviam colocado em volta do pescoço, das mãos, das pernas e de todo o corpo. Novecentos homens dos mais robustos foram empregados a puxar as cordas por meio de um elevado número de polés ligadas às varas, e, por essa forma, em menos de três horas, fui levantado, colocado e ligado à máquina. Sei tudo isso pela narração que depois me fizeram, porque, enquanto durou aquela manobra, dormia eu profundamente. Quinhentos cavalos, dos maiores que existiam nas cavalariças imperiais, tendo cada um a altura de quatro polegadas e meia, foram atrelados ao carro, e arrastaram-no na direção da capital, que ficava à distância de um quarto de légua.
Tinha já quatro horas de caminho, quando fui subitamente acordado por um acidente deveras ridículo. Os condutores haviam parado para arranjar qualquer coisa, e uns três habitantes do país tiveram a curiosidade de examinar o meu rosto enquanto dormia; e, avançando cautelosamente até a minha cara, um deles, capitão dos guardas, enfiou a aguda ponta da alabarda na minha venta esquerda, o que me fez comichão no nariz, acordou-me e obrigou-me a espirrar três vezes. Caminhamos durante o resto do dia e acampamos à noite, com quinhentos guardas, metade com archotes e metade com arcos e flechas, prontos a descarregá-las ao primeiro movimento que eu fizesse.
No dia seguinte, ao romper do sol, continuamos a nossa rota e chegamos ao meio-dia a cem toesas das portas da cidade. O imperador e toda a corte saíram para nos ver; mas os oficiais não consentiram que Sua Majestade arriscasse a sua pessoa em subir para o meu corpo, como muitos outros o haviam feito.
No sítio em que o carro parou, havia um antigo templo, tido como o maior de todo o império, que, segundo o preconceito daquela gente, fora profanado com um crime de homicídio, e, por esse motivo, era empregado para diversos usos. Ficou resolvido que eu ficaria alojado naquele vasto edifício. A porta grande, que dava para o norte, tinha aproximadamente seis palmos de altura e quase três de largura; aos lados, havia uma pequena janela de seis polegadas. À da esquerda, os serralheiros do imperador aplicaram noventa e uma correntes, parecidas com as que as damas da Europa costumam usar nos relógios, e quase tão grossas; e com trinta e seis cadeados me prenderam a perna esquerda. Em frente do templo, do outro lado da estrada, à distância de vinte pés, havia uma torre que devia ter uns cinco pés de altura; era aí que o soberano devia subir com muitos dos principais senhores da sua corte para, comodamente, ver-me à sua vontade. Conta-se que mais de cem mil habitantes saíram da cidade, atraídos pela curiosidade, e, apesar dos meus guardas, não foram menos de dez mil, suponho eu, os que, por diversas vezes, subiriam com escadas acima do meu corpo, se se não publicasse um decreto do conselho do Estado proibindo que tal coisa se fizesse.
Não é possível imaginar-se o barulho e o espanto do povo, quando me viu de pé e a caminhar: as correntes que me prendiam o pé esquerdo tinham pouco mais ou menos seis pés de comprido, e davam-me liberdade de ir e vir, descrevendo um semicírculo.
Capítulo II
O imperador de Lilipute, acompanhado de muitos dos seus cortesãos, veio visitar o autor na sua prisão — Descrição da personalidade e do trajo de Sua Majestade — Sábios nomeados para ensinar o idioma do país ao autor — São-lhe concedidas algumas graças em virtude da sua conduta pacífica — As algibeiras são-lhe revistadas.
A primeira vez que o imperador, a cavalo, me veio visitar, ia-lhe sendo funesta, porque, ao ver-me, o cavalo, espantado, encabritou-se; o príncipe, porém, que é um excelente cavaleiro, firmou-se bem nos estribos até que a sua comitiva correu e lhe segurou o freio ao cavalo. Sua Majestade, depois de pôr o pé em terra, examinou-me por todos os lados com grande admiração, mantendo-se sempre, contudo, por precaução, fora do alcance da minha corrente.
A imperatriz, as princesas e os príncipes de sangue, acompanhados de muitas damas, sentaram-se a alguma distância em cadeiras de braços.
O imperador é o homem mais alto de toda a sua corte, o que o faz temido de todos os que o olham. As feições do seu rosto são fortes e másculas; lábio austríaco, nariz aquilino e tez esverdeada; é de corpo bem feito, membros proporcionados; tem graça e majestade em todos os seus movimentos. Tinha já passado a flor da sua mocidade, tendo vinte e oito anos e três quartos, e já reinara sete, aproximadamente. Para o contemplar mais à minha vontade, mantinha-me deitado de lado, de maneira que o meu rosto estivesse paralelo ao seu, enquanto ele se conservava a toesa e meia longe de mim. Depois disso, tive-o muitas vezes à minha mão e por essa circunstância não é fácil enganar-me em descrevê-lo. O seu trajo era simples, meio europeu, meio asiático; mas cingia-lhe a cabeça um ligeiro elmo de ouro, ornado de jóias e de um magnífico penacho. Empunhava a espada para se defender, caso eu quebrasse as minhas cadeias. Esta espada devia ter o tamanho de três polegadas; o punho e a bainha eram de ouro e cheios de diamantes. A sua voz era áspera, mas clara e distinta, e podia ouvi-lo à vontade, embora me conservasse de pé. As damas e os cortesãos vinham todos soberbamente trajados, de modo que o lugar ocupado por toda a corte parecia a meus olhos como que uma bela saia estendida no chão e bordada com figuras de ouro e prata. Sua Majestade imperial concedeu-me a honra de falar comigo muitas vezes: e eu sempre lhe respondi, sem que nos entendêssemos um ao outro. Ao cabo de duas horas, a corte retirou-se e deixaram-me numerosa guarda para impedir a impertinência e, quiçá, a maldade da populaça, que sentia grande impaciência em amontoar-se em torno de mim, para me ver de perto. Alguns tiveram o arrojo e a temeridade de me alvejar com flechas, uma das quais me ia tirando o olho esquerdo. O coronel, porém, mandou prender os seis mais teimosos desta canalha e não julgou pena mais conveniente para aquele delito do que entregá-los às minhas mãos bem amarrados e tolhidos.
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