Tomei-os, pois, com a mão direita e meti-os todos cinco na algibeira do gibão; quanto ao sexto, fingi querer engoli-lo vivo. O pobre diabo soltava gritos horríveis, e o coronel, juntamente com alguns oficiais, estava sobressaltado, principalmente quando viu que eu sacava de um canivete. Mas depressa lhe fiz cessar todo o espanto porque, com uma calma suave e humana, cortei rapidamente as cordas que o prendiam e o coloquei no chão com a máxima delicadeza, e ele logo fugiu em desabalada carreira. Tratei os outros pela mesma forma, tirando-os da algibeira, um por um. Notei, com satisfação, que os soldados e o povo tinham ficado muito comovidos com aquele gesto de humanidade, que foi relatado à corte de um modo vantajoso para mim e que me deu honra.
A notícia da chegada de um homem prodigiosamente grande espalhara-se em todo o império e atraíra grande número de pessoas ociosas e curiosas, de maneira que as aldeias ficaram quase despovoadas e o cultivo das terras ficaria abandonado, o que seria uma enorme calamidade para o país, se Sua Majestade imperial não providenciasse com a publicação de decretos. Decretou, pois, que todos aqueles que já me tinham visto, voltassem imediatamente para suas casas e não tornassem a aparecer, senão mediante uma licença especial. Essa medida deu imensos lucros aos empregados das secretarias do Estado.
Entretanto, o imperador convocara diversas vezes os conselhos, para deliberar sobre o partido que era preciso tomar a respeito de mim. Soube mais tarde que a corte se tinha visto em sérios embaraços. Receavam que eu quebrasse as correntes e me pusesse em liberdade; diziam que o meu sustento, porque causava uma enorme despesa, viria a produzir carestia e escassez de víveres; por vezes eram de opinião que me deixassem morrer de fome ou então que me atravessassem com flechas envenenadas; refletiram, porém, que a infecção de um corpo como o meu poderia produzir uma epidemia na capital e em todo o império. Enquanto deliberavam, muitos oficiais do exército dirigiram-se para a porta da antecâmara, onde se reunia o conselho, e logo que dois foram introduzidos, deram conta do meu comportamento com respeito aos seis criminosos, a que já me referi, o que causou uma impressão tão favorável no espírito de Sua Majestade e de todo o conselho, que uma comissão imperial foi logo enviada para obrigar todas as aldeias, a quatrocentas e cinqüenta toesas em redor da cidade, a entregar todas as manhãs seis bois, quarenta carneiros e outros víveres para meu sustento, com uma quantidade proporcional de pão e de vinho, além de outras bebidas. Esses gêneros seriam pagos com letras do tesouro, que Sua Majestade mandava entregar. Este príncipe tinha apenas de rendimento o das suas terras, e só em ocasiões muito especiais é que criava impostos aos seus súditos, que eram obrigados a acompanhá-lo à guerra à sua própria custa.
Foram designadas seiscentas pessoas para me servirem, as quais tiveram uma gratificação especial para seu passadio e tendas muito cômodas, levantadas aos lados da minha porta para residirem.
Também foi ordenado que trezentos alfaiates me fizessem uma roupa à moda do país; que seis homens de letras, dos mais notáveis do império, fossem encarregados de me ensinar a língua e, enfim, que os cavalos do imperador e os da nobreza, fariam muitas vezes exercícios na minha presença para se costumarem à minha estatura. Todas estas ordens foram pontualmente cumpridas. Fiz grandes progressos no conhecimento da língua de Lilipute. Entrementes, o imperador deu-me a honra de freqüentes visitas e também quis auxiliar os meus professores a me instruírem.
As primeiras palavras que aprendi foram para lhe dar a perceber que tinha grande vontade de que me concedesse liberdade, o que todos os dias lhe repetia de joelhos. A sua resposta foi que era preciso esperar por algum tempo; que era um assunto que não podia resolver sem ouvir a opinião do seu conselho e que, primeiramente, era necessário que eu prometesse, sob juramento, observar uma inviolável paz para com ele e com os seus súditos, e que enquanto esperasse, seria tratado com toda a delicadeza possível. Aconselhou-me a alcançar, pela minha paciência e pelo meu bom comportamento, a sua estima e a do seu povo. Pediu-me que lhe não ficasse querendo mal, se ordenasse a certos oficiais que me revistassem, porque era muito natural que eu trouxesse comigo armas perigosas e prejudiciais à segurança do Estado. Respondi-lhe que estava pronto a despir a roupa e a despejar todas as algibeiras na sua presença. Observou-me que, conforme às leis do império, era preciso que fosse revistado por dois comissários; que sabia muito bem que tal ato não se devia executar sem meu consentimento, porém que formava tão bom conceito da minha generosidade e da minha retidão, que confiaria sem receio aqueles indivíduos nas minhas mãos; que tudo o que se me tirasse, me seria restituído fielmente, quando saísse do país, ou que seria indenizado segundo o valor que eu próprio desse.
Quando vieram os dois comissários para me revistar, tomei esses dois cavalheiros nas minhas mãos. Meti-os primeiramente nas algibeiras do gibão, e, depois, em todas as outras. Vinham munidos de penas, tinta e papel, e de tudo o que viram, fizeram um minucioso inventário; e, assim que concluíram, pediram-me que os pusesse no chão para que fossem dar conta ao imperador do que haviam visto.
Este inventário era assim concebido:
"Em primeiro lugar, na algibeira direita do gibão do grande Homem Montanha (que assim traduzi as palavras Quimbus Flestrin), após uma minuciosa busca, apenas encontramos um pouco de fazenda grosseira, demasiado grande para servir de tapete na principal sala de recepção de Vossa Majestade. Na algibeira esquerda, achamos um grande cofre de prata com uma tampa do mesmo metal, que nós, comissários, não pudemos levantar. Pedimos ao citado Homem Montanha que o abrisse e, entrando um de nós, enterrou-se em pó até ao joelho e esteve a espirrar durante duas horas, e outro, sete minutos. Na algibeira direita do colete, encontramos um prodigioso maço com a grossura aproximada de três homens, amarrado com um cabo muito forte, de substâncias brancas e delgadas, pegadas uma às outras, com grandes figuras negras, que nos pareceram ser de escrita. Na algibeira direita, havia uma grande máquina chata, armada com dentes muito compridos que pareciam a paliçada que há em volta do palácio de Sua Majestade. Na algibeira grande do lado direito do alçapão, (conforme interpretei a palavra ranfulo, pela qual queriam indicar os meus calções), vimos um grande pilar de ferro, oco, ligado a uma grossa peça de madeira, maior do que o pilar, e de um lado desse pilar havia outras peças de ferro em relevo, que seguravam uma pedra talhada em cunho; não soubemos o que isso era, e na algibeira direita havia ainda uma outra máquina do mesmo gosto.
"Na algibeirinha do lado direito, havia muitas rodelas de metal vermelho e branco e de uma grossura diferente; algumas das rodelas brancas, que nos pareceram ser de prata, eram de tal diâmetro e peso, que eu e meu colega tivemos certa dificuldade em levantá-las. Item, dois sabres de algibeira, cuja lâmina se encaixava em uma ranhura do punho e tinha um fio muito cortante; estavam metidos numa grande caixa ou estojo. Havia ainda duas algibeiras a revistar, que eram duas aberturas talhadas no alto do alçapão, mas muito juntas em virtude do seu ventre, que as comprimia. De fora do bolsinho direito pendia uma grande corrente de prata, com uma maravilhosa máquina na extremidade.
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