A partida deve ser interessante, talvez aposte essa gente toda − esses manes todos que estão à roda. Que cara fez o marquês a um finadinho que lhe foi meter o nariz nas cartas! Quem havia de ser! O intrometido de M. de Talleyrand. Estava-lhe caindo. Mas não viu nada: o nobre marquês sempre soube esconder o seu jogo.

A mim é que ele já me viu.

− Que diz? Ah!... Sim, senhor, sou português; e venho fazer uma pergunta a V. Ex.ª, esclarecer-me sobre um ponto importante.

Deitou-me a tremenda luneta.

− Para que mandou V. Ex.ª arrancar as vinhas do Ribatejo?

Apertou a luneta no sobrolho e sorriu-se.

− Elas aí estão centuplicadas, que até já invadiram o pinhal da Azambuja. Fez V. Ex.ª um despotismo inútil, e agora...

− Agora quem bebe por lá todo esse vinho?

Não sabia o que havia de responder. Ele sacudiu a cabeleira de anéis, virou-me as costas, deu o braço a Colbert, passou por pé de Ricardo Smith e de J. Batista Say, que estavam a disputar, encolheu os ombros em ar de compaixão, e foi-se por uma alameda muito viçosa que ia por aqueles deliciosos jardins dentro, e sumiu-se da nossa vista.

Eu surdi cá neste mundo, e achei-me em cima da azêmola, ao pé do grande café do Cartaxo.






[1]. Um dos dois cemitérios de Lisboa − seja dito para a inteligência do leitor provinciano − chama-se dos Prazeres, por uma ermida de N. S.ª que ali existia com esta invocação desde antes do terreno ter o presente destino. É notável a coincidência dos nomes. (N.A.)

Capítulo VII

Reflexões importantes sobre o Bois de Boulogne, as carruagens de molas, Tortoni, e o café do Cartaxo. − Dos cafés em geral, e de como são característicos da civilização de um país. − O Alfageme. − Hecatombe involuntária imolada pelo A. − História do Cartaxo. − Demonstra-se como a Grã-Bretanha deveu sempre a sua força e toda a sua glória a Portugal. − Shakespeare e Laffite, Milton e Châteaux-Margaux, Nelson e o Príncipe de Joinville. − Prova-se evidentemente que M. Guizot é a ruína de Albion e do Cartaxo.

Voltar à meia-noite do Bois de Boulogne − o bosque por excelência −, descer, entre as nuvens de poeira, o longo estádio dos Campos Elísios, entrever, na rápida carreira, o obelisco de Lúxor, as árvores das Tulherias, a coluna da praça Vandome, a magnificência heteróclita da Madalena, e enfim sentir parar, de uma sofreada magistral, os dois possantes ingleses que nos trouxeram quase de um fôlego até ao bulevar de Gand; aí entreabrir molemente os olhos, levantando meio corpo dos regalados coxins de seda, e dizer: Ah! estamos em Tortoni... que delícia um sorvete com este calor! − é seguramente, é dos prazeres maiores desse mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de existência que vale dez anos de ser rei em qualquer outra parte do mundo.

Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores deste mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado: o prazer de chegar por aquele modo a Tortoni, o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves molas que fabricasse arte inglesa do puro aço de Suécia, não alcança, não se compara ao prazer e consolação da alma e corpo que eu senti ao apear-me da minha chouteira mula à porta do grande café do Cartaxo.

Fazem ideia do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, não saem, se não veem mundo esta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o teatro de S. Carlos, como hão de alargar a esfera de seus conhecimentos, desenvolver o espírito, chegar à altura do século?

Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama nova, ide que não prestais para nada, meus queridos lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de algum melodrama velho que fugiu assobiado da Porte Saint-Martin e veio esconder-se na rua dos Condes. Também podeis ir aos Touros − estão embolados, não há perigo...

Viajar?... Qual viajar! Até a Cova da Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavalinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.

Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.

O café é uma das feições mais características de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o país em que está, o seu governo, as suas leis, os seus costumes, a sua religião.

Levem-me de olhos tapados onde quiserem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhes que em menos de dez minutos lhes digo a terra em que estou se for país sublunar.

Nós entramos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo, e nunca se encruzou turco em divã de seda do mais esplêndido café de Constantinopla, com tanto gozo de alma e satisfação de corpo, como nós nos sentamos nas duras e ásperas tábuas das esguias banquetas malsarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo.

Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade clássica: será um paralelogramo pouco maior que a minha alcova; à esquerda duas mesas de pinho, à direita o mostrador envidraçado onde campeiam as garrafas obrigadas de licor de amêndoa, de canela, de cravo.