Acabei com elas quando chegamos à ponte da Asseca.

Esquecia-me de dizer que daqueles três grandes poetas só um está traduzido em português − o Rotschild: não é literal a tradução, agalegou-se e ficou muito suja de erros de imprensa, mas como não há outra...

Ora donde veio este nome de Asseca? Algures daqui perto deve de haver sítio, lugar ou coisa que o valha, com o nome de Meca; e daí talvez o admirável rifão português que ainda não foi bem examinado como devia ser, e que decerto encerra algum grande ditame de moral primitiva: andou por Seca (Asseca?) e Meca e Olivais de Santarém. Os tais Olivais ficam logo adiante. É uma etimologia como qualquer outra.

A ponte da Asseca corta uma várzea imensa que há de ser um vasto paul de inverno: ainda agora está a dessangrar-se em água por toda a parte.

É notável na história moderna este sítio. Aqui, num recontro com os nossos, foi Junot gravemente ferido, ferido na cara. Il ne sera plus beau garçon, disse o parlamentário francês que veio depois da ação, tratar, creio eu, de troca de prisioneiros ou de coisa semelhante. Mas enganou-se o parlamentário; Junot ainda ficou muito guapo e gentil-homem depois disso.

Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta, as duas primeiras notabilidades que ouvi aclamar com tais e cujos nomes conheci... Engano-me: conheci primeiro o nome de Bonaparte. E lembra-me muito bem que nunca me persuadi que ele fosse o monstro disforme e horroroso que nos pintavam frades e velhas naquele tempo. Imaginei sempre que, para excitar tantos ódios e malquerenças, era necessário que fosse um bem grande homem.

Desde pequeno que fui jacobino, já se vê: e de pequeno me custou caro. Levei bons puxões de orelhas de meu pai por comprar na feira de S. Lázaro, no Porto, em vez de gaitinhas ou de registros de santos ou das outras bugigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o quê... um retrato de Bonaparte.

Foi enguiço, diria uma senhora do meu conhecimento que acreditou neles, foi enguiço que ainda não se desfez e que toda a vida me tem perseguido.

Quem me diria quando, por esse primeiro pecado político da minha infância, por esse primeiro tratamento duro e − perdoe-me a respeitada memória de meu santo pai! − injustíssimo, que me trouxe o mero instinto das ideias liberais, que me diria que eu havia de ser perseguido por elas toda a vida! Que apenas saído da puberdade havia de ir a essa mesma França, à pátria dessas ideias com que a minha natureza simpatizava sem saber por quê, buscar asilo e guarida?

Não vi já quase nenhum daqueles que tanto desejara conhecer; as ruínas do grande Império estavam dispersas; os seus generais mortos, desterrados, ou trajavam interesseiros e cobardes as librés do vencedor...

De todas as grandes figuras dessa época, a que melhor conheci e tratei foi uma senhora, tipo de graça, de amabilidade e de talento. Pouco foi o nosso trato, mas quanto bastou para me encantar, para me formar no espírito um modelo de valor e merecimento feminino que veio a me fazer muito mal.

Custa depois a encher aquela altura a que se marcou...

Eis aqui como eu fiz esse conhecimento.

Inda o estou vendo, coitado! O pobre do C. do S., nobre, espirituoso, cavalheiro, fazendo-se perdoar todos os seus prejuízos de casta, que tinha como ninguém, por aquela polidez superior e afabilidade elegante que distingue o verdadeiro fidalgo (estilo antigo); inda o estou vendo, já sexagenário, já mais que ci-devant jeune homme, o pescoço entalado na inflexível gravata, os pés pegando-se-lhe, como os de Ovídio, ao limiar da porta − não que lhos prendessem saudades, senão que lhos paralisava a caquexia incipiente −, mas o espírito jovem a reagir e a teimar.

− Vamos! − disse ele − hoje estou bom, sinto-me outro, quero apresentá-lo a Madame de Abrantes. Está tão velha! Isto de mulheres não são como nós, passam muito depressa.

E o desgraçado tremiam-lhe as pernas e sufocava-o a tosse.

Tomamos uma citadine, e fomos com efeito à nova e elegante rua chamada, não impropriamente, a rua de Londres, onde achamos rodeada de todo o esplendor do seu ocaso aquela formosa estrela do Império.

Não quero dizer que era uma beleza, longe disso. Nem bela, nem moça, nem airosa de fazer impressão era a Duquesa de Abrantes. Mas em meia hora de conversação, de trato, descobriam-se-lhe tantas graças, tanto natural, tanta amabilidade, um complexo tão verdadeiro e perfeito da mulher francesa, a mulher mais sedutora do mundo, que involuntariamente se dizia a gente no seu coração: − Como se está bem aqui!

Falamos de Portugal, de Lisboa, do Império, da Restauração, da Revolução de julho (isto era em 1831), de M. de Lafayette, de Luís Filipe, de Chateaubriand − o grande amigo dela − do Sacré-Coeur e das suas elegantes devotas[1] −, falamos artes, poesia, política... e eu não tinha ânimo para acabar de conversar.

Benévolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciência, um resto de consciência: acabemos com estas digressões e perenais divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado à minha espera no meio da ponte da Asseca. Perdoa-me por quem és, demos de espora às mulinhas, e vamos que são horas.

Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas e de loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França, nem terra alguma do ocidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos faltam.






[1]. O convento que tem este nome em Paris, é casa de educação de meninas nobres, e recolhimento de senhoras também. (N.A.)

Capítulo X

Vale de Santarém. − Namora-se o A. de uma janela que vê por entre umas árvores. − Conjeturas várias a respeito da dita janela. − Semelhança do poeta com a mulher namorada, e inquestionável inferioridade do homem que não é poeta. − Os rouxinóis.