Medita-se ali por força; isola-se a alma dos sentidos pelo suave adormecimento em que eles caem... e Deus, a eternidade − as primitivas e inatas ideias do homem – ficam únicas no seu pensamento...
É assim. Mas um rochedo em que me eu sente ao pôr do sol na gandra erma e selvagem, vestida apenas de pastio bravo, baixo e tosquiado rente pela boca do gado − diz-me coisas da terra e do céu que nenhum outro espetáculo me diz na natureza. Há um vago, um indeciso, um vaporoso naquele quadro que não tem nenhum outro.
Não é o sublime da montanha, nem o augusto do bosque, nem o ameno do vale. Não há aí nada que se determine bem, que se possa definir positivamente. Há a solidão que é uma ideia negativa...
Eu amo a charneca.
E não sou romanesco. Romântico, Deus me livre de o ser − ao menos, o que na algaravia de hoje se entende por essa palavra.
Ora a charneca dentre Cartaxo e Santarém, àquela hora que a passamos, começava a ter esse tom, e a achar-lhe eu esse encanto indefinível.
Sentia-me disposto a fazer versos... a quê? Não sei.
Felizmente que não estava só; e escapei de mais essa caturrice.
Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo, porque me deixei cair num verdadeiro estado poético de distração, de mudez − cessou-me a vida toda de relação, e não sentia existir senão por dentro.
De repente acordou-me do letargo uma voz que bradou:
− Foi aqui!... aqui é que foi, não há dúvida.
− Foi aqui o quê?
− A última revista do imperador.
− A última revista! Como assim a última revista! Quando, pois?...
Então caí completamente em mim, e recordei-me, com amargura e desconsolação, dos tremendos sacrifícios a que foi condenada esta geração, Deus sabe para quê − Deus sabe se para expiar as faltas de nossos antepassados, se para comprar a felicidade de nossos vindouros...
O certo é que ali com efeito passara o imperador D. Pedro a sua última revista ao exército liberal.
Foi depois da batalha de Almoster, uma das mais lidadas e das mais ensanguentadas daquela triste guerra.
Toda a guerra civil é triste.
E é difícil dizer para quem mais triste, se para o vencedor ou para o vencido.
Ponham de parte questões individuais, e examinem de boa-fé: verão que, na totalidade de cada facção em que a Nação se dividiu, os ganhos, se os houve para quem venceu, não balançam os padecimentos, os sacrifícios do passado, e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro...
Eu não sou filósofo. Aos olhos do filósofo, a guerra civil e a guerra estrangeira, tudo são guerras que ele condena − e não mais uma do que a outra... a não ser Hobbes, o dito filósofo, o que é coisa muito diferente.
Mas não sou filósofo, eu: estive no campo de Waterloo, sentei-me ao pé do leão de bronze sobre aquele monte de terra amassado com o sangue de tantos mil, vi – e eram passados vinte anos –, vi luzir ainda pela campina os ossos brancos das vítimas que ali se imolaram a não sei quê... Os povos disseram que à liberdade, os reis que à realeza... Nenhuma delas ganhou muito, nem para muito tempo com a tal vitória...
Mas deixemos isso. Estive ali, e senti bater-me o coração com essas recordações, com essas memórias dos grandes feitos e gentilezas que ali se obraram.
Por que será que aqui não sinto senão tristeza?
Porque lutas fratricidas não podem inspirar outro sentimento e porque...
Eu moía comigo só essas amargas reflexões, e toda a beleza da charneca desapareceu diante de mim.
Nesta desagradável disposição de ânimo chegamos à ponte da Asseca.
Capítulo IX
Prolegômenos dramático-literários, que muito naturalmente levam, apesar de algum rodeio, ao retrospecto e reconsideração do capítulo antecedente. − Livros que não deviam ter títulos, e títulos que não deviam ter livro. − Dos poetas deste século. Bonaparte, Rotschild e Sílvio Pélico. − Chega-se ao fim destas reflexões e à ponte da Asseca. − Tradução portuguesa de um grande poeta. − Origem de um ditado. − Junot na ponte da Asseca. − De como o A. deste livro foi jacobino desde pequeno. − Enguiço que lhe deram. − A duquesa de Abrantes. − Chega-se enfim ao Vale de Santarém.
Vivia aqui há coisa de cinquenta para sessenta anos, nesta boa terra de Portugal, um figurão esquisitíssimo que tinha inquestionavelmente o instinto de descobrir assuntos dramáticos nacionais − ainda, às vezes, a arte de desenhar bem o seu quadro, de lhe agrupar, não sem mérito, as figuras: mas ao pô-las em ação, ao colori-las, ao fazê-las falar... boas-noites! era sensaboria irremediável.
Deixou uma coleção imensa de peças de teatro que ninguém conhece, ou quase ninguém, e que nenhuma sofreria, talvez, representação; mas rara é a que não poderia ser arranjada e apropriada à cena.
Que mina tão rica e fértil para qualquer mediano talento dramático. Que belas e portuguesas coisas se não podem extrair dos treze volumes − são treze volumes e grandes! − do teatro de Ênio Manuel de Figueiredo! Algumas dessas peças, com bem pouco trabalho, com um diálogo mais vivo, um estilo mais animado, fariam comédias excelentes.
Estão-me a lembrar estas.
O casamento da cadeia − ou talvez se chame outra coisa, mas o assunto é este: comédia cujos caracteres são habilmente esboçados, funda-se naquela nossa antiga lei que fazia casar na prisão os que assim se supunha poderem reparar certos danos de reputação feminina.
O fidalgo de sua casa, sátira mui graciosa de um tão comum ridículo nosso.
As duas educações, belo quadro de costumes: são dois rapazes, ambos estrangeiramente educados, um francês, outro inglês, nenhum português. É eminentemente cômico, frisante, ou, segundo agora se diz à moda, “palpitante de atualidade”.
O cioso, comédia já remoçada da antiga comédia de Ferreira e que em si tem os germes da mais rica e original composição.
O avaro dissipador, cujo só título mostra o engenho e invenção de quem tal assunto concebeu: assunto ainda não tratado por nenhum de tantos escritores dramáticos de nação alguma, e que é todavia um vulgar ridículo, todos os dias encontrado no mundo.
São muitas mais, não ficam nestas as composições do fertilíssimo escritor que, passadas pelo crivo de melhor gosto, e animadas sobretudo no estilo, fariam um razoável repertório para acudir à míngua dos nossos teatros.
Uma das mais sensabores, porém, a que vulgarmente se haverá talvez pela mais sensabor, mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade familiar e simpática de seu tom magoado e melancolicamente chocho, é a que tem por título Poeta em anos de prosa.
E foi por esta, foi por amor desta que eu me deixei cair na digressão dramático-literária do princípio deste capítulo; pegou-se-me à pena porque se me tinha pregado na cabeça; e/ou o capítulo não saía, ou ela havia de sair primeiro.
Poeta em anos de prosa! Ó Figueiredo, Figueiredo, que grande homem não foste tu, pois imaginaste esse título que só ele em si é um volume! Há livros, e conheço muitos, que não deviam ter título, nem o título é nada neles.
Faz favor de me dizer o de que serve, o que significa o Judeu errante posto no frontispício desse interminável e mercatório romance que aí anda pelo mundo, mais errante, mais sem fim, mais imorredouro que o seu protótipo?
E há títulos também que não deviam ter livro, porque nenhum livro é possível escrever que os desempenhe como eles merecem.
Poeta em anos de prosa é um desses.
Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje se escrevem verdadeiramente belas, isto é, simples, verdadeiras, e por consequência sublimes, que não exclame com sincero pesadume cá de dentro: Poeta em anos de prosa!
Pois este é o século para poetas? Ou temos nós poetas para este século?...
Temos, sim, eu conheço três: Bonaparte, Sílvio Pélico e o Barão de Rotschild.
O primeiro fez a sua Ilíada com a espada, o segundo com a paciência, o último com o dinheiro.
São os três agentes, as três entidades, as três divindades da época.
Ou cortar com Bonaparte, ou comprar com Rotschild, ou sofrer e ter paciência com Sílvio Pélico.
Todo o que fizer doutra poesia − e doutra prosa também − é tolo...
Vieram-me estas mui judiciosas reflexões a propósito do capítulo antecedente desta minha obra-prima; e lancei-as aqui para instrução e edificação do leitor benévolo.
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