mas sempre labutando pela vida...
– A força é que se fala – tornou o campino para estabelecer a questão em terreno que lhe convinha. – A força é que se fala: um homem do campo que se deita ali à cernelha de um touro que uma companhia inteira de varinos lhe não pegava, com perdão dos senhores, pelo rabo!...
E reforçou o argumento com uma gargalhada triunfante, que achou eco nos interessados circunstantes que já se tinham apinhado a ouvir os debates.
Os ílhavos ficaram um tanto abatidos; sem perderem a consciência de sua superioridade, mas acanhados pela algazarra.
Parecia a esquerda de um parlamento quando vê sumir-se, no burburinho acintoso das turbas ministeriais, as melhores frases e as mais fortes razões dos seus oradores.
Mas o orador ílhavo não era homem de se dar assim por derrotado. Olhou para os seus, como quem os consultava e animava, com um gesto expressivo, e voltando-se a nós, com a direita estendida aos seus antagonistas:
– Então agora como é de força, quero eu saber, e estes senhores que digam, qual é que tem mais força, se é um touro ou se é o mar.
– Essa agora!...
– Queríamos saber.
– É o mar.
– Pois nós que brigamos com o mar, oito a dez dias a fio numa tormenta, de Aveiro a Lisboa, e estes que brigam uma tarde com um touro, qual é o que tem mais força?
Os campinos ficaram cabisbaixos; o público imparcial aplaudiu por esta vez a oposição, e o Vouga triunfou do Tejo.
[1]. É visível alusão ao popular e inimitável opúsculo de Xavier de Maistre, Voyage autour de ma chambre, que decerto foi principiado a escrever em Turim, e que muitos supõem que fosse concluído em São Petersburgo. (N.A.)
[2]. É puramente histórico isto; e também é verdade que em grande parte daqui se originou a perseguição brutal que sofreu o A. dali a poucos meses. (N.A.)
[3]. Regata chamavam, e não sei se chamam ainda, em Veneza, às carreiras de barcos apostados ao desafio. A palavra e a coisa introduziu-se em Inglaterra, onde é moda e popularíssima. (N.A.)
Capítulo II
Declaram-se típicas, simbólicas e míticas estas viagens. Faz o A. modestamente o seu próprio elogio. Da marcha da civilização: e mostra-se como ela é dirigida pelo cavaleiro da Mancha, D. Quixote, e por seu escudeiro Sancho Pança. − Chegada a Vila Nova da Rainha. Suplício de Tântalo. − A virtude galardão de si mesma e sofisma de Jeremias Bentham. − Azambuja.
Estas minhas interessantes viagens hão de ser uma obra-prima, erudita, brilhante, de pensamentos novos, uma coisa digna do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas da Europa sem nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie.
Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se mete hoje em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.
É um mito porque − porque... Já agora rasgo o véu, e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda ideia que está oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzinha que parece feita a brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave, pensada como um livro novo da feira de Leipzig, não das tais brochurinhas dos boulevards de Paris.
Houve aqui há anos um profundo e cavo filósofo de além-Reno, que escreveu uma obra sobre a marcha da civilização, do intelecto − o que diríamos, para nos entenderem todos melhor, o Progresso. Descobriu ele que há dois princípios no mundo: o espiritualista, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e abstratas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do cavaleiro da Mancha, D. Quixote; o materialista, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê, e cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.
Mas, como na história do malicioso Cervantes, esses dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam contudo juntos sempre; ora um mais atrás, ora outro mais adiante, empecendo-se muitas vezes, coadjuvando-se poucas, mas progredindo sempre.
E aqui está o que é possível ao progresso humano.
E eis aqui a crônica do passado, a história do presente, o programa do futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que domina el-rei Sancho.
Depois há de vir D. Quixote.
O senso comum virá para o milênio, reinado dos filhos de Deus! Está prometido nas divinas promessas... como el-rei de Prússia prometeu uma constituição; e não faltou ainda, porque, porque o contrato não tem dia; prometeu, mas não disse quando.
Ora nesta minha viagem Tejo arriba está simbolizada a marcha do nosso progresso social: espero que o leitor entendesse agora. Tomarei cuidado de lho lembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.
Somos chegados ao triste desembarcadouro de Vila Nova da Rainha, que é o mais feio pedaço de terra aluvial em que ainda pousei os meus pés. O sol arde como ainda não ardeu este ano.
Um imenso arraial de caleças, de machinhos, de burros e arrieiros, nos espera naquele descampado africano. É forçoso optar entre os dois martírios da caleça, ou do macho.
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