Do mal o menos... seja este.
E acolá, oh, suplício de Tântalo! Vejo duas possantes e nédias mulas castelhanas jungidas a um veículo que, nestas paragens ao pé daqueloutros, me parece mais esplêndido do que um landau de Hyde Park, mais elegante do que um caleche de Longchamps, mais cômodo e elástico do que o mais aéreo brisca da princesa Helena. E contudo − oh mágico poder das situações! − ele não é senão uma substancial e bem-apessoada traquitana de cortinas.
Togados manes dos antigos desembargadores, venerandas cabeleiras de anéis e castanhola, que direis, ó respeitadas sombras, se desse limbo onde estais esperando pela ressurreição do Pegas... e do Livro Quinto − vedes este degenerado e espúrio sucessor vosso, em calças largas, fraque verde, chapéu branco, gravata de cor, chicotinho de cautchu na mão, pronto a cavalgar em mulinha de Palito Métrico como um garraio estudantinho do segundo ano, e deitando os olhos invejosos para esse natural próprio e adscritício modo de condução desembargatória? Oh que direis vós! Com que justo desprezo não olhareis para tanta degradação e derrogação!
Eu comungava silenciosamente comigo nestas graves meditações, e revolvia incertamente no ânimo a ponderosa dúvida: se o administrar justiça direita aos povos valia a pena de andar um desembargador a pé!... Lutava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote do espírito − quando a Providência, que nos maiores apertos e tentações não nos abandona nunca, me trouxe a generosa oferta de um amigo e companheiro do vapor, o Sr. L. S.: era a sua invejada carroça, e nela me deu lugar até a Azambuja.
A virtude é o galardão de si mesma, disse um filósofo antigo; e eu não creio no famoso dito de Bentham, que sabedoria antiga seja um sofisma. O mais moderno é o mais velho, não há dúvida; mas o antigo que dura ainda, é porque tem achado na experiência a confirmação que o moderno não tem. Jeremias Bentham também fazia o seu sofisma como qualquer outro.
Vamos percorrendo lentamente aquele malcomposto marachão, que poucos palmos se eleva do nível baixo e salgadiço do solo; de inverno não se passará sem perigo; ainda agora se não anda sem incômodo e receio. Estamos em Vila Nova e às portas do nojento caravançarai, único asilo do viajante nesta, hoje, a mais frequentada das estradas do reino.
Parece-me estar mais deserto e sujo, mais abandonado e em ruínas, este asqueroso lugarejo, desde que ali ao pé tem a estação dos vapores, que são a comodidade, a vida, a alma do Ribatejo. Imagino que uma aldeia de alarves nas faldas do Atlas deve ser mais limpa e cômoda.
Oh! Sancho, Sancho, nem sequer tu reinarás entre nós! Caiu o carunchoso trono de teu predecessor, antagonista e às vezes amo; açoitaram-te essas nádegas para desencantar a formosa del Toboso, proclamaram-te depois rei em Barataria, e nesta tua província lusitana nem o paternal governo de teu estúpido materialismo pode estabelecer-se para cômodo e salvação do corpo, já que a alma... oh! a alma...
Falemos noutra coisa.
Fujamos depressa deste monturo. É monótona, árida e sem frescura de árvores e estradas: apenas alguma rara oliveira mal medrada, a longos e desiguais espaços, mostra o seu tronco raquítico e braços contorcidos, ornados de ramúsculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume. O solo, porém, com raras exceções, é ótimo e, a troco de pouco trabalho e insignificante despesa, daria uma estrada tão boa como as melhores da Europa.
Dizia um secretário de Estado, meu amigo, que, para se repartir com igualdade o melhoramento de ruas por toda a Lisboa, deviam ser obrigados os ministros a mudar de rua e bairro todos os três meses. Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial, para as calendas gregas, eu hei de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada ano, como a desobriga.
Aí está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visíveis sinais de vida, asseadas e com ar de conforto as suas casas. É a primeira povoação que dá indício de estarmos nas férteis margens do Nilo português.
Corremos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumula as três distintas funções, de hotel, de restaurante e de café da terra.
Santo Deus! Que bruxa está à porta! Que antro lá dentro!... Cai-me a pena da mão.
Capítulo III
Acha-se desapontado o leitor com a prosaica sinceridade do A. destas viagens. O que devia ser uma estalagem nas nossas eras de literatura romântica. − Suspende-se o exame desta grave questão para tratar em prosa e verso, um mui difícil ponto de economia política e de moral social. − Quantas almas é preciso dar ao diabo e quantos corpos se têm de entregar no cemitério para fazer um rico neste mundo. − Como se veio a descobrir que a ciência deste século era uma grandessíssima tola. − Rei de fato e rei de direito. − Beleza e mentira não cabem num saco. − Põe-se o A. a caminho para o pinhal da Azambuja.
Vou desapontar decerto o leitor benévolo: vou perder, pela minha fatal sinceridade, quanto em seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros capítulos desta interessante viagem.
Pois que esperava ele de mim agora, de mim que ousei declarar-me escritor nestas eras de romantismo, século das fortes sensações, das descrições e traços largos e incisivos que se entalham n’alma e entram com sangue no coração?
No fim do capítulo precedente paramos à porta de uma estalagem: que estalagem deve ser esta, hoje, no ano de 1843, às barbas de Vitor Hugo, com o doutor Fausto a trotar na cabeça da gente, com os Mistérios de Paris nas mãos de todo o mundo?
Há paladar que suporte hoje a clássica posada do Cervantes com seu mesonero gordo e grave, as pulhas dos seus arrieiros, e o mantear de algum pobre lorpa de algum Sancho! Sancho, o invisível rei do século, aquele por quem hoje os reis reinam e os fazedores de lei decretam e aferem o justo! Sancho manteado por vis muleteiros! Não é da época.
Eu coroarei de trevo a minha espada.[1]
De cenouras, luzerna e beterraba,
Para cantar Harmódios e Aristógitons,
Que do tirano jugo vos livraram
Da ciência velha, inútil, carunchosa.
Que elevava da terra, erguia, alçava
O que no homem há do Ser divino,
E para os grandes feitos e virtudes
Lhe despegava o espírito da carne...
Não: plantai batatas, ó geração de vapor e de pó de pedra, macadamizai estradas, fazeis caminhos de ferro, construí passarolas de Ícaro, para andar a qual mais depressa, estas horas contadas de uma vida toda material, maçuda e grossa como tendes feito esta que Deus nos deu tão diferente do que a que hoje vivemos. Andai, ganha-pães, andai; reduzi tudo a cifras, todas as considerações deste mundo a equações de interesse corporal, comprai, vendei, agiotai. No fim de tudo isto, o que lucrou a espécie humana? Que há mais umas poucas dúzias de homens ricos. E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico? − Que lho digam no Parlamento inglês, onde, depois de tantas comissões de inquérito, já devia andar orçado o número de almas[2] que é preciso vender ao diabo, número de corpos que se tem de entregar antes do tempo ao cemitério para fazer um tecelão rico e fidalgo como sir Roberto Peel, um mineiro, um banqueiro, um granjeiro, seja o que for: cada homem rico, abastado, custa centos de infelizes, de miseráveis.
Logo a nação mais feliz, não é a mais rica. Logo o princípio utilitário não é a mamona da injustiça e da reprovação.
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