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There are more things in heaven and earth, Horatio.
Than are dreamt of in your philosophy.[3]
A ciência deste século é uma grandessíssima tola.
E, como tal, presunçosa e cheia de orgulho dos néscios.
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Vamos à descrição da estalagem. Não pode ser clássica, assobiam-me todos esses rapazes de pera, bigode e charuto, que fazem literatura cava e funda desde a porta do Marrare até o café de Moscou...
Mas aqui é que me aparece uma incoerência inexplicável. A sociedade é materialista; e a literatura, que é a expressão da sociedade, é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! Sancho rei de fato, Quixote rei de direito.
Pois é assim; e explica-se. − É a literatura que é uma hipócrita; tem religião nos versos, caridade nos romances, fé nos artigos de jornais − como os que dão esmolas para pôr no Diário, que amparam órfãs na Gazeta, e sustentam viúvas nos cartazes dos teatros.
E falam no Evangelho! Deve ser por escárnio. Se o leem, hão de ver lá que nem a esquerda deve saber o que faz a direita...
Vamos à descrição da estalagem; e acabemos com tanta digressão.
Não pode ser clássica, está visto, a tal descrição. − Seja romântica. − Também não pode ser. Por que não? É pôr-lhe lá um Chourineur a amolar um facão de palmo e meio para espatifar rês e homem, quanto encontrar − uma Fleur de Marie[4] para dizer e fazer pieguices com uma roseirinha pequenina, bonitinha, que morreu, coitadinha! − e um príncipe alemão encoberto, forte no soco britânico, imenso em libras esterlinas, profundo em gírias de cegos e ladrões... e aí fica a Azambuja com uma estalagem que não tem que invejar à mais pintada e da moda neste século elegante, delicado, verdadeiro, natural!
É como eu devia fazer a descrição: bem o sei. Mas há um impedimento fatal, invencível − igual ao daquela formosa salva que se não deu... é que nada disso lá havia.
E eu não quero caluniar a boa gente da Azambuja. Que me não leiam os tais, porque eu hei de viver e morrer na fé de Boileau.
Rien n’est beau que le vrai.
Já se diz há muitos anos que honra e proveito não cabem num saco; eu digo que beleza e mentira também lá não cabem: e é a mais portuguesa tradução que creio que se possa fazer daquele imortal e evangélico hemistíquio. A maior parte das belezas da literatura atual fazem-me lembrar aquelas formosuras que tentavam os santos eremitas na Tebaida. O pobre de Santo Antão ou de S. Pacômio (Pacômio é melhor aqui) ficavam embasbacados no princípio; mas dava-lhe o coração uma pancada, olhavam-lhe para os pés... Cruzes, maldito! Os pés não podia ele encobrir. E ao primeiro abrenuntio do santo, dissipava-se a beleza em muito fumo de enxofre, e ficava o diabo negro, feio e cabrum com quem é, e sempre foi o pai da mentira.
Nada, nada, verdade e mais verdade. Na estalagem da Azambuja o que havia era uma pobre velha a quem eu chamei bruxa, porque enfim que havia de eu chamar à velha suja e maltrapilha que estava à porta daquela asquerosa casa?
Havia lá esta velha, com a sua moça mais moça, mas não menos nojenta de ver que ela, e um velho meio paralítico, meio demente, que ali estava para um canto com todo o jeito e traça de quem vem folgar agora na taberna porque já bebeu o que havia de beber nela.
Matava-nos a sede; mas a água ali é beber quartãs. O vinho era atroz. Limonada? Não há limões nem açúcar. Mandou-se um próprio à tenda no fim da vila. Vieram três limões que me pareceram de uns que pendiam, quando eu vinha a férias, à porta do famoso botequim de Leiria.
O açúcar podia servir na última cena de M. de Pourceaugnac muito melhor que numa limonada. Mas misturou-se tudo com a água das sezões, bebemos, pusemo-nos em marcha, e até agora não nos fez mal, com o ser a mais abominável, antipática e suja beberagem que se pode imaginar.
Caminhamos na mesma ordem até chegar ao famoso pinhal da Azambuja.
[1]. Estes versos são uma espécie de paródia dos famosos fragmentos de Alceu, de que só existe memória nos escólios que nos conservou Eustáquio. Nas Flores sem frutos, pág. 56, vem a tradução daquele belo fragmento. (N.A.)
[2]. Os protocolos das comissões de inquérito de há oito para dez a esta parte, sobre o estado das classes trabalhadoras e indigentes em Inglaterra, é a prova real dos grandes cálculos da economia política, ciência que eu espero em Deus que se há de desacreditar muito cedo. (N.A.)
[3]. A tradução chegada destes memoráveis versos de Shakespeare é: Há mais coisas no céu, há mais na terra / Do que sonha tua vã filosofia. (N.A.)
[4].
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