É que a pensar ou a sonhar nestas coisas fui eu todo o caminho, até me achar no meio do pinhal da Azambuja.
Aí paramos, e acordei eu.
Sou sujeito a estas distrações, a este sonhar acordado. Que lhe hei de eu fazer? Andando, escrevendo: sonho e ando, sonho e falo, sonho e escrevo. Francamente me confesso de sonâmbulo, de soníloquo, de... Não, fica melhor com seu ar de grego (hoje tenho a bossa helênica num estado de tumescência pasmosa!); digamos sonílogo, sonígrafo...
A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar estas folhas, e passar o capítulo seguinte, que é outra casta de capítulo.
[1]. Addison, o poeta, foi ministro da rainha Ana de Inglaterra, e membro do célebre gabinete chamado de All-isits. (N.A.)
Capítulo V
Chega o A. ao pinhal da Azambuja e não o acha. Trabalha-se por explicar este fenômeno pasmoso. Belo rasgo de estilo romântico. − Receita para fazer literatura original com pouco trabalho. − Transição clássica: Orfeu e o bosque de Mênalo. − Desce o A. destas grandes e sublimes considerações para as realidades materiais da vida: é desamparado pela hospitaleira traquitana e tem de cavalgar na triste mula de arrieiro. Admirável chouto do animal. Memórias do Marquês do F. que adorava o chouto.
Este é que é o pinhal da Azambuja?
Não pode ser.
Esta, aquela antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico! E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar história de Pedro Malasartes que logo, em imaginação, lhe não pusesse a cena aqui perto!... Eu que esperava topar a cada passo com a cova do Capitão Roldão e da dama Leonarda!... Oh! que ainda me faltava perder mais esta ilusão...
Por quantas maldições e infernos adornam o estilo dum verdadeiro escritor romântico, digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sítios medonhos desta espessura? Pois isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?... Eu que os trazia prontos e recortados para os colocar aqui todos os amáveis Salteadores de Schiller, e os elegantes facínoras de Auberge-des-Adrets, eu hei de perder os meus chefes de obra! Que é perdê-los isto − não ter onde os pôr!...
Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião vou te explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. Já não me importa guardar segredo; depois desta desgraça não me importa já nada. Saberás pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler.
Trata-se de um romance, de um drama − cuidas que vamos estudar a história, a natureza, os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo na natureza, colori-los das cores verdadeiras da história... isso é trabalho difícil, longo, delicado, exige um estudo, um talento, e sobretudo um tato!...
Não, senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente. Eu lhe explico.
Todo o drama e todo o romance precisa de:
Uma ou duas damas.
Um pai.
Dois ou três filhos, de dezenove a trinta anos.
Um criado velho.
Um monstro, encarregado de fazer as maldades.
Vários tratantes, e algumas pessoas capazes para intermédios.
Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul − como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks; forma com elas os grupos e situações que lhe parece; não importa que sejam mais ou menos disparatados. Depois vai-se às crônicas, tiram-se um pouco de nomes e de palavrões velhos; com os nomes crismam-se os figurões, com os palavrões iluminam-se... (estilo de pintor pinta-monos). E aqui está como nós fazemos a nossa literatura original.
E aqui está o precioso trabalho que eu agora perdi!
Isto não pode ser! Uns poucos pinheiros raros e enfezados através dos quais se estão quase vendo as vinhas e olivedos circunstantes!... É o desapontamento mais chapado e solene que nunca tive na minha vida − uma verdadeira logração em boa e antiga frase portuguesa.
E, contudo, aqui é que devia ser, aqui é que é, geográfica e topograficamente falando, o bem conhecido e confrontado sítio do pinhal da Azambuja...
Passaria por aqui algum Orfeu que, pelos mágicos poderes de sua lira, levasse atrás de si as árvores deste antigo e clássico Mênalo dos salteadores lusitanos?
Eu não sou muito difícil em admitir prodígios quando não sei explicar os fenômenos por outro modo. O pinhal da Azambuja mudou-se.
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