Qual, de entre tantos Orfeus que a gente por aí vê e ouve, foi o que obrou a maravilha, isso é mais difícil de dizer. Eles são tantos, e cantam todos tão bem! Quem sabe? Juntar-se-iam, fariam uma companhia por ações, e negociariam um empréstimo harmônico com que facilmente se obraria então o milagre. É como hoje se faz tudo; é como se passou o tesouro para o banco, o banco para as companhias de confiança... por que se não faria o mesmo com o pinhal da Azambuja?

Mas onde está ele então? Faz favor de me dizer...

Sim, senhor, digo: está consolidado. E se não sabe o que isto quer dizer, leia os orçamentos, veja a lista dos tributos, passe pelos olhos os votos de confiança; e se depois disto não souber aonde e como se consolidou o pinhal da Azambuja, abandone a geografia que visivelmente não é a sua especialidade, e deite-se a finanças, que tem bossa; fazemo-lo eleger aí por Arcozelo ou pela cidade eterna − é o mesmo − vai para a comissão de fazenda − depois lorde do tesouro, ministro: é escala, não ofendia nem a rabugenta Constituição de 38, quanto mais a Carta...

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O pior é que no meio destes campos onde Troia fora, no meio destas areias onde se açoitavam dantes os pálidos medos do pinhal da Azambuja, a minha querida e benfazeja traquitana abandonou-me; fiquei como o bom Xavier de Maistre quando, a meia jornada de seu quarto, lhe perdeu a cadeira o equilíbrio, e ele caiu − ou ia caindo, já me não lembro bem − estatelado no chão.

Ao chão estive eu para me atirar, como criança amuada, quando vi voltar para a Azambuja o nosso cômodo veículo, e diante de mim a enfezada mulinha asneira que − ai triste! − tinha de ser o meu transporte dali até Santarém.

Enfim o que há de ser, há de ser, e tem muita força. Consolado com esse tão verdadeiro quanto elegante provérbio, levantei o ânimo à altura da situação e resolvi fazer prova de homem forte e suportador de trabalhos. Bifurquei-me resignadamente sobre o cilício do esfarrapado albardão, tomei na esquerda as impermeáveis rédeas e couro cru, e lancei o animalejo ao seu mais largo trote, que era um confortável e ameníssimo chouto, digno de fazer as delícias do meu respeitável e excêntrico amigo, o Marquês de F.

Tinha a bossa, a paixão, a mania, a fúria de choutar aquele notável fidalgo − o último fidalgo homem de letras que deu esta terra. Mas adorava o chouto o nobre Marquês. Conheci-o em Paris nos últimos tempos da sua vida, já octogenário ou perto disso: deixava a sua carruagem inglesa toda molas e confortos para ir passear num certo cabriolé de praça que ele tinha marcado pelo seco e duro movimento vertical com que sacudia a gente. Obrigou-me um dia a experimentá-lo: era admirável. Comunicava-se da velha horsa normanda aos varais, e dos varais à concha do carro, tão inteiro e tão sem diminuição o chouto do execrável Babieca! Nunca vi coisa assim. O Marquês achava-lhe propriedades tonipurgativas, eu classifiquei-o de violentíssimo drástico.

Foi um dos homens mais extraordinários e o português mais notável que tenho conhecido, aquele fidalgo.

Era feio como o pecado, elegante como um bugio, e as mulheres adoravam-no. Filho segundo, vivia dos seus ordenados nas missões por que sempre andou, tratava-se grandiosamente, e legou valores consideráveis por sua morte. Imprimia uma obra sua, mandava tirar um único exemplar, guardava-o e desanchava as formas... Não acabo se começo a contar histórias do Marquês de F.

Fiquemos para o Cartaxo, que são horas.

Capítulo VI

Prova-se como o velho Camões não teve outro remédio senão misturar o maravilhoso da mitologia com o do Cristianismo. − Dá-se razão, e tira-se depois ao Padre José Agostinho. − No meio destas dissertações acadêmico-literárias vem o A. a descobrir que para tudo é preciso ter fé neste mundo. Diz-se neste mundo, porque, quanto ao outro, já era sabido. − Os Lusíadas, o Fausto e a Divina Comédia − Desgraça do Camões em ter nascido antes do Romantismo. − Mostra-se como a Estige e o Cocito sempre são melhores sítios que o Inferno e o Purgatório. − Vai o A. em procura do Marquês de Pombal, e dá com ele nas ilhas Beatas do poeta Alceu. − Partida de uíste entre os ilustres finados. − Compaixão do Marquês pelos pobres homens de Ricardo Smith e J. B. Say. − Resposta dele e da sua luneta às perguntas peralvilhas do A. − Chegada a este mundo e ao Cartaxo.

O mais notável, e não sei se diga, se continuarei ao menos dizer, o mais indesculpável defeito que até aqui esgravataram os críticos e zoilos na Ilíada dos povos modernos, os imortais Lusíadas, é sem dúvida a heterogênea e heterodoxa mistura de teologia com a mitologia, do maravilhoso alegórico do paganismo, com os graves símbolos do cristianismo. A falar a verdade, e por mais figas que a gente queira fazer ao Padre José Agostinho − ainda assim! ver o Padre Baco revestido in pontificalibus diante de um retábulo, não me lembra de que santo, dizendo o seu dominus vobiscum provavelmente a algum acólito bacante ou coribante, que lhe responde o et cum spiritu tuo!...