Walden

Rosto

O homem da casa do lago

Eduardo Bueno[1]

Henry David Thoreau foi uma nuvem de calças.

Nascido em Concord, Massachusetts, na costa leste dos Estados Unidos, em julho de 1817, pairou acima e ao largo de seus compatriotas e contemporâneos. Lançou-se a tais altitudes – e em eventuais platitudes – disposto não apenas a ver o mundo de cima mas a experimentar um universo próprio e idiossincrático. Muitas vezes assomou-se leve, habilitado a flutuar em céu azul, como se parte da paisagem que tanto amou. Noutras, revelou-se capaz de projetar sombras, quando não raios e trovões, vertendo aguaceiros incômodos sobre sua vila e seu país. Tratou de despejá-los na forma de discurso torrencial: uma prosa caudalosa que – caso tivesse sido realmente lida – haveria de ter o efeito de uma enchente na planície onde labutavam “em calado desespero” os homens de sua região e sua época.

Thoreau foi único, solitário e inimitável.

Mas Henry David Thoreau foi também um chato de galochas – até porque de fato as calçava. Não era perfeito, e muito menos aperfeiçoável. Misantropo, misógino, radical e irredutível, parecia cultivar a inconveniência como virtude. Mais do que mero exercício de retórica, afrontar o senso comum sempre lhe pareceu emérita prática cotidiana. Thoreau manteve o dedo em riste – acusatório e descortês. E tratou de metê-lo nas feridas vivas de uma nação que ainda não havia forjado plenamente a própria identidade. Identidade que, embora por vias transversas, Thoreau ajudaria a construir. Thoreau foi desprezado e ofendido, mas isso não lhe doeu tanto quanto nas ocasiões – aliás, mais frequentes – em que pregou ao deserto.

Thoreau era um caminhante, mas nunca foi pedestre.

Para Thoreau estava tudo na cara. E Thoreau foi um cara de pau. Seu semblante despertou surpresa e susto naqueles que o contemplaram. Com feições como que talhadas a machado no cerne de madeira nobre e dura, Thoreau tinha, muito apropriadamente, a face de um fauno. O nariz adunco, os olhos miúdos, o cenho franzido, os lábios finos como navalha emolduravam as maçãs salientes de um rosto que fazia lembrar o de um totem indígena. Thoreau era uma esfinge – e, por não saberem decifrá-lo, alguns homens de seu tempo quiseram devorá-lo. Mas Thoreau era osso duro de roer.

Nem todo mundo ia com a cara de Thoreau. Para o grande Robert Louis Stevenson, por exemplo, sua “face aguda, penetrante e com um narigão emitia certos sinais das limitações de sua mente e de seu caráter”. Até entre os que nutriam simpatia por ele, como Nathaniel Hawthorne, o rosto e as maneiras de Thoreau provocavam estranhamento. Conforme o autor de A letra escarlate, Thoreau era “feio como o pecado, com o nariz comprido, a boca transversal e os modos desajeitados, quase rústicos, apesar de corteses”.

Com o passar dos anos a fachada de Thoreau foi se transfigurando e, como o próprio estado de espírito, parece ter se suavizado. Uma foto clássica, tomada em 1861, um ano antes de sua morte, aos 44 anos, exibe olhos translúcidos, quase aquosos, adornados por sobrancelhas grossas e arqueadas, em harmonia com a testa larga e a basta barba de profeta. Um seu discípulo, Daniel Ricketson, recordou “a gentileza, humanidade e sabedoria” estampada naqueles “olhos azuis profundos”, e, embora o admirador não tenha mencionado a evidente melancolia expressa no retrato, não se pode dizer que exagerasse.

A voz de Thoreau também causou comoção. Não apenas o que ele dizia, mas os sons que emitia ecoavam tonitruantes, quase estrondosos, nos ouvidos e nas mentes de seus interlocutores, mesmo depois que a tuberculose se instalou para lhe corroer os pulmões. Testemunhos presenciais o atestam: “Suas palavras soavam tão distintas e verdadeiras ao ouvido quanto as de um emérito cantor”, anotou o pastor Robert Collyer. “Ele hesitava por breves instantes à espera da palavra exata, ou então aguardava com paciência comovedora até vencer seu problema pulmonar, mas, quando enfim proferia a sentença, ela ressoava perfeita e concêntrica.”

Para que sua voz literária também se projetasse, Thoreau precisou de doses ainda maiores de paciência. Mas enfim encontrou a modulação correta ao publicar Walden ou A vida nos bosques, clássico que o leitor ora tem em mãos. Como em suas conversações recheadas de reticências, o tom autoral não lhe surgiu espontaneamente, senão que após muito esforço e alguns alarmes falsos. Ainda assim, sua linguagem nunca primou pelo requinte literário nem pela clareza de estilo. Walden é um livro anguloso e em várias passagens prolixo. Repleto de citações e aforismos, remete a gregos e latinos e vai referindo contistas chineses ou poetas persas um tanto obscuros, em meio a frequentes recaídas paroquiais e rasgos doutrinários.

Thoreau era, com efeito, um pregador, propondo a religião de um homem só, soando como o arauto do individualismo intransigente e da liberdade pessoal quase refratária.