E se era um tribuno, fez de sua cabana em Walden a tribuna de onde, em certos momentos, parece insinuar que estava apto e era impoluto, austero e estoico o bastante para julgar o resto da humanidade.
E, no entanto, tal é a sinceridade da voz que ressoa nestas páginas, tal sua singularidade e pureza virtualmente virginal que, com o passar dos anos, Thoreau acabou se impondo no panteão dos heróis rebeldes, dos desbravadores da mente, dos anunciadores de um novo tempo – tempo que, se não se concretizou, não foi capaz de fazer com que o discurso de Thoreau perdesse (pelo contrário, só reforçou) sua disposição utópica e indômita.
Thoreau não era uma ilha – nenhum homem é, já houve quem tenha dito. Apesar da aura de ermitão que viria a adquirir, Thoreau foi mais gregário do que a sua obra deixa transparecer. Um dos capítulos de Walden, muito apropriadamente chamado “Visitas”, já revela que ele não viveu em completo isolamento, como, em alguns momentos, dá a entender. Mas Thoreau nunca foi companhia exatamente agradável, e sua teimosia só era compreendida e aceita por aqueles que, como o mentor e padrinho literário Ralph Waldo Emerson, desde o início a perceberam em toda a sua ousada pretensão.
Thoreau era um bicho do mato. O historiador James Kendall Hosmer o descreveu “parado no umbral de sua casa, com o cabelo desgrenhado como se estivesse adornado com pinhas e musgos, e as roupas puídas e em desalinho exibindo os traços de suas andanças pelas matas e pântanos”. Thoreau se sentia deslocado na cidade (embora sua Concord natal tivesse pouco mais de dois mil habitantes), na universidade (apesar de ter se formado em Harvard), nos saraus, na paróquia. Isolado em sua cabana de Walden, subverteu até o dito americano segundo o qual “three is a crowd” (“três é uma multidão”): para ele, um era bom, dois já era demais...
Thoreau talvez sonhasse ser o nobre selvagem. Ele “nunca se formou em nenhuma profissão”, relatou Emerson. “(...) nunca se casou; vivia sozinho; nunca ia à igreja; nunca votou; recusou-se a pagar um imposto ao Estado; não comia carne, não tomava vinho, nunca usou tabaco; embora estudasse a Natureza, não utilizava armas nem armadilhas. Quando lhe perguntavam à mesa qual prato preferia, ele respondia: ‘O que estiver mais perto’.” Tais e tantas “superioridades negativas” levaram Stevenson a concluir que Thoreau “se apresentava tão distante da humanidade que é difícil saber se devemos chamá-lo de semideus ou de semi-homem”.
Thoreau era o peixe fora d’água que, às margens do lago Walden, submeteu-se a uma metamorfose. Só que, em vez de virar barata, um belo dia acordou transformado em pato – ou em algo semelhante, já que sua ave favorita, a mobelha, de fato se parece com um. Dona de uma “risada demoníaca (...) talvez o som mais selvagem jamais ouvido por aqui”, aquela ave solitária o atraía, e ele se identificava com ela.
No outono, estação predileta do autor, o animal aparecia para “trocar as penas e se banhar no lago”. Ao descrever tal período, Thoreau reflete: “Nossa estação de muda, como a das aves, deve ser um momento de crise em nossa vida. A mobelha, durante a muda, se retira para um lago solitário. Assim também a cobra solta sua casca e a lagarta, seu casulo (...)”.
Embora Thoreau tenha se recolhido à floresta disposto a se libertar da “epiderme ou falsa pele, que não faz parte de nossa vida”, não se pode deixar de notar que, em inglês, a ave se denomina loon – e loon também significa “maluco” ou, mais propriamente, “lunático”. Thoreau, num rasgo insuspeito de humor, parece, assim, inclinado a debochar de si mesmo e ironizar seus detratores – se não a escarnecer dos futuros seguidores de seu evangelho peculiar.
É como se ele adivinhasse que, um século e meio mais tarde, Walden iria se transformar de tal forma na bíblia do movimento preservacionista – bem como no manual da desobediência civil e no livro de cabeceira dos rebeldes cheios de causas – que, conforme observou John Updike, a obra “corre o risco de se tornar tão citada e tão pouco compreendida quanto a própria Bíblia”.
Com efeito, em tempos de discurso ecológico lustroso mas vazio – de supostas preocupações com “desenvolvimento sustentável” anunciadas por conglomerados que, enquanto puderam, destruíram tudo a seu redor; de comerciais de veículos “ecológicos” 4 x 4 patrolando dunas e riachos; de aventuras na natureza programadas para executivos estressados em busca de um novo “modelo de gestão”, de ecovilas, eco sports e eco resorts; em tempos de roupas esportivas trajadas por turistas, mesmo que estejam apenas subindo a torre Eiffel de elevador ou voando em jatinhos para alguma ruína maia –, Thoreau haveria de odiar, e trataria de afrontar, a maioria dos que se dizem seus admiradores.
Thoreau era sua própria bússola – e jamais perdeu o norte. Mesmo após a morte, parece manter não apenas o rumo, mas o controle sobre seu legado. Isso porque a voz que ele fez soar em Walden não foi abafada pela cacofonia publicitária das palavras ocas.
Foi no dia 4 de julho de 1845 que Henry David Thoreau caminhou pelas ruas de sua pequena Concord e seguiu em direção ao oeste, rumo ao lago Walden, onde construíra, com as próprias mãos e em terreno que pertencia a Emerson, a diminuta cabana de seis metros quadrados. Por todos os Estados Unidos celebrava-se o dia em que o país tinha se libertado da Inglaterra. Não há de ter sido à toa que Thoreau elegeu a data para a mudança: ele estava declarando a própria independência. Tinha 28 anos e, embora houvesse estudado em Harvard, não tinha ocupação fixa: fazia apenas bicos e lápis na pequena fábrica da família. O que ele buscava, o dinheiro e os ofícios não podiam comprar. Àqueles que espalhavam que ele não tinha profissão nem trabalho, Thoreau dizia ser “supervisor das tempestades”, das “trilhas nas florestas” e pastor de “animais desgarrados”.
Thoreau não era um joão-ninguém. Mas era quase. Não por ser um despossuído, mas porque, apesar de contemporâneo e quase vizinho de Herman Melville, Nathaniel Hawthorne, Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Henry Longfellow e Emily Dickinson, só lhe foi dado compartilhar com eles a mesma época, a mesma região do país e a mesma labuta de escritor. Afinal, embora viesse a tomar parte no movimento batizado de Transcendentalismo – também chamado, e talvez mais apropriadamente, de “Renascimento Americano” –, Thoreau nunca foi de “frequentar” e, com exceção de Emerson e do poeta (e seu futuro biógrafo) W. Ellery Channing, nenhum dos citados o levava a sério.
Pelo menos não até que Walden fosse descoberto.
Ao colocar em Walden o subtítulo quase romântico de A vida nos bosques, Thoreau parece convidar o leitor para o mergulho em uma aventura. Como se o livro fosse uma espécie de Robinson Crusoé passado não numa ilha, mas num lago de degelo. Mas quem apanha a obra em busca de ação e fábula depara com uma série de sermões, quando não com uma espécie de dissertação de mestrado imersa em moralismo. E, no entanto, para além da retórica ríspida e da acidez monocromática de uma prosa eventualmente empolada, o lado “aventuresco” de Walden também se impõe.
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