Mas, muito mais do que isso, o livro é um guia para uma viagem interior. Porque, mesmo quando imerge em alegorias e parábolas, Thoreau se mantém firme, vigoroso e evocativo, impondo seu discurso lúcido, acurado e tantas vezes profético.
Thoreau foi uma espécie de Júlio Verne que, em vez de descrever as maravilhas do futuro, anteviu os desatinos de um modelo desenvolvimentista que nunca quis levar em conta a preservação da natureza. Previu o advento de um consumismo viciante e vicioso; viu os tempos em que a privacidade deixaria de ser um recurso natural renovável para se tornar bem descartável; ouviu os gritos surdos da maioria silenciosa. E preferiu se retirar para trocar as penas.
Junto aos patos; longe dos lunáticos.
Mesmo assim, e com todo seu apreço pela solidão, Henry David Thoreau continua, 150 anos depois, nos convidando para nos unirmos a ele na minúscula cabana às margens de Walden.
Para fazê-lo, basta mergulhar nas páginas que se seguem.
Porto Alegre
Inverno de 2010
Walden
ou A vida nos bosques
Não pretendo escrever uma ode à melancolia, e sim trombetear vigorosamente como um galo ao amanhecer, no alto de seu poleiro, quando menos para despertar meus vizinhos.
Economia
Quando escrevi as páginas seguintes, ou melhor, o principal delas, eu vivia sozinho na mata, a um quilômetro e meio de qualquer vizinho, numa casa que eu mesmo tinha construído à margem do Lago Walden, em Concord, Massachusetts, e ganhava minha vida apenas com o trabalho de minhas mãos. Vivi lá dois anos e dois meses. Hoje em dia sou de novo um hóspede da vida civilizada.
Eu não imporia tanto meus assuntos à atenção de meus leitores se meus concidadãos não tivessem feito indagações muito particulares sobre minhas condições de vida, que alguns diriam impertinentes, embora não me pareçam nada impertinentes, e sim, dadas as circunstâncias, muito naturais e pertinentes. Uns perguntaram o que eu comia; se não me sentia solitário; se não tinha medo, e coisas assim. Outros ficaram curiosos para saber quanto de minha renda eu destinava a fins de caridade; e alguns, com famílias grandes, quantas crianças pobres eu sustentava. Portanto pedirei àqueles meus leitores que não têm nenhum interesse particular em mim que me perdoem se, neste livro, tento responder a algumas dessas perguntas. A maioria dos livros omite o eu ou a primeira pessoa; aqui ele será mantido; em relação ao egocentrismo, esta é a principal diferença. Geralmente não lembramos que, afinal, é sempre a primeira pessoa que está falando. Eu não falaria tanto sobre mim mesmo se existisse alguma outra pessoa que eu conhecesse tão bem. Infelizmente estou restrito a este tema devido à minha experiência limitada. Além disso, de minha parte, espero de todo escritor, do primeiro ao último, um relato simples e sincero de sua vida, e não apenas o que ele ouviu da vida de outros homens; o mesmo tipo de relato que ele enviaria de uma terra distante a seus parentes; pois, se viveu com sinceridade, deve ter sido numa terra distante de mim. Talvez estas páginas se destinem mais especialmente a estudantes pobres. Quanto aos meus outros leitores, aceitarão as partes que se aplicam a eles. Confio que ninguém haverá de forçar as costuras ao vestir um casaco, pois pode ser de utilidade a quem nele couber.
Eu gostaria de dizer alguma coisa, não tanto sobre os chineses ou os habitantes das ilhas Sandwich, e sim sobre vocês que estão lendo estas páginas e que devem viver na Nova Inglaterra; alguma coisa sobre a condição de vocês, em especial a condição externa ou as circunstâncias neste mundo, nesta cidade, ou seja, se é necessário que ela seja tão ruim como é, ou se não pode ser melhorada. Andei muito por Concord; e por todo lugar, nas lojas, nos escritórios, nos campos, os habitantes me pareciam estar cumprindo penitência de mil surpreendentes maneiras. O que ouvi falar dos brâmanes sentados entre quatro fogos e olhando diretamente o sol; ou pendurados de cabeça para baixo sobre labaredas; ou fitando os céus com a cabeça voltada para o alto “até que se torna impossível retomar a posição natural, e não lhes passa nada pela garganta torcida exceto líquidos”; ou passando o resto de seus dias acorrentados ao pé de uma árvore; ou medindo com o corpo, como uma lagarta, a extensão de vastos impérios; ou de pé numa perna só no alto de uma coluna – nem essas formas de penitência voluntária conseguem ser mais incríveis e espantosas do que as cenas que presencio todos os dias. Os doze trabalhos de Hércules não passavam de brincadeira de criança em comparação aos trabalhos de meus vizinhos; pois os de Hércules eram apenas doze, e chegaram ao fim; mas nunca vi esses homens matarem ou capturarem nenhum monstro ou terminarem trabalho algum. Eles não têm nenhum amigo Iolau que queime com ferro em brasa a raiz da cabeça da Hidra e, quando esmagam uma, logo surgem duas.
Vejo rapazes de minha cidade cujo infortúnio foi ter herdado sítios, casas, celeiros, gado e implementos agrícolas; pois é mais fácil comprar essas coisas do que se desfazer delas. Melhor se tivessem nascido no pasto ao ar livre e fossem amamentados por uma loba, pois então poderiam enxergar com visão mais clara o campo que foram chamados a trabalhar. Quem fez deles servos do solo? Por que teriam de comer seus sessenta acres, se o homem está condenado a comer apenas seu quinhão de terra? Por que teriam de começar a cavar o próprio túmulo desde que nascem? Precisam viver o tempo de vida de um homem, empurrando todas essas coisas em frente e seguindo como podem. Quantas pobres almas imortais encontrei quase esmagadas e sufocadas sob suas cargas, arrastando-se pela estrada da vida, empurrando um celeiro de trezentos metros quadrados, sem nunca conseguir limpar seus estábulos de Áugias, e mais cem acres de terra, feno, lavoura, pasto e madeira! Quem não recebe dote, quem não se debate com a herança desses encargos desnecessários, julga trabalho suficiente dominar e cultivar uns poucos decímetros cúbicos de carne.
Mas os homens trabalham sob engano. O que o homem tem de melhor logo se mistura à terra para se transformar em adubo. Por um destino ilusório, geralmente chamado de necessidade, eles se dedicam, como diz um velho livro, a acumular tesouros que serão roídos pelas traças e pela ferrugem e roubados pelos ladrões. É uma vida de tolo, como vão descobrir quando chegarem ao final dela, ou talvez antes. Diz-se que Deucalião e Pirra criaram a humanidade atirando pedras atrás de si:
Inde genus durum sumus, experiensque laborum,
Et documenta damus qua simus origine nati.
“Por isso somos dura espécie, experiente na labuta,
E damos prova da origem de onde nascemos.”
Ou, como dizem as rimas sonoras de Raleigh:
“From thence our kind hard-hearted is, enduring pain and care,
Approving that our bodies of a stony nature are.”
“Por isso é nossa espécie empedernida, sofrendo dor e aflição,
Provando que nossos corpos de pétrea natureza são.”
Tudo isso por causa de uma obediência cega a um oráculo incerto, atirando as pedras por sobre os ombros, sem ver onde elas caíam.
A maioria dos homens, mesmo neste país relativamente livre, por mera ignorância e erro, vivem tão ocupados com as falsas preocupações e as lides desnecessariamente pesadas da vida que não conseguem colher seus frutos mais delicados. Os dedos, pelo excesso de trabalho, ficam demasiado trôpegos, trêmulos demais para isso. Na verdade, quem trabalha não tem tempo livre para uma autêntica integridade dia a dia; não pode se permitir manter as relações mais viris com os homens; seu trabalho seria depreciado no mercado.
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