Vida ou morte, ansiamos apenas pela realidade. Se estamos realmente morrendo, ouçamos o estertor em nossa garganta e sintamos frio nas extremidades; se estamos vivos, vamos cuidar de nossos afazeres.

O tempo é apenas o rio em que vou pescando. Bebo nele; mas, enquanto tomo sua água, vejo o leito arenoso e percebo como é raso. A corrente rala desliza e vai embora, mas a eternidade permanece. Eu beberia mais ao fundo; pescaria no firmamento, com o leito seixado de estrelas. Não consigo contar nenhuma. Não conheço a primeira letra do alfabeto. Sempre lamentei não ser tão sábio quanto no dia em que nasci. O intelecto é um cutelo; discerne e fende seu caminho até o âmago secreto das coisas. Não quero ocupar minhas mãos além do necessário. Minha cabeça são mãos e pés. Nela sinto concentradas todas as minhas melhores faculdades. Meu instinto me diz que minha cabeça é um órgão para cavar, assim como algumas criaturas usam o focinho e as patas dianteiras, e com ela eu abriria e cavaria meu caminho por essas colinas. Penso que o veio mais rico está por aqui, em algum lugar; assim julgo eu, pela vareta divinatória e pelos finos vapores que se elevam; e aqui vou começar a cavar.

Leitura

Com um pouco mais de vagar e deliberação na escolha de suas metas, provavelmente todos os homens se tornariam em essência estudiosos e observadores, pois decerto nossa natureza e nosso destino interessam a todos por igual. Ao acumular bens para nós ou nossa posteridade, ao criar uma família ou um Estado, ou mesmo ao adquirir fama, somos mortais; mas ao lidar com a verdade somos imortais, e não precisamos temer mudanças e acidentes. O mais antigo filósofo egípcio ou hindu ergueu uma ponta do véu da estátua da divindade; e o trêmulo tecido ainda se mantém erguido, e fito uma glória tão fresca quanto ele fitou, pois naquele momento era eu nele a ser tão ousado, e agora é ele em mim que renova a visão. Nenhum pó se assentou naquele tecido; nenhum tempo decorreu desde que se revelou aquela divindade. O tempo realmente proveitoso, ou aproveitável, não é passado, presente ou futuro.

Minha morada era mais favorável, não só ao pensamento, mas à leitura séria, do que uma universidade; e embora estivesse fora do raio da biblioteca circulante normal, mais do que nunca eu entrara no raio de influência daqueles livros que circulam pelo mundo, cujas frases foram escritas pela primeira vez em casca de árvore e que agora são meramente copiadas de tempos em tempos em papel de tecido. Diz o poeta Mîr Camar Uddîn Mast: “Percorrer sentado a região do mundo espiritual, tive essa vantagem nos livros. Embriagar-me com uma única taça de vinho, experimentei esse prazer ao beber o licor das doutrinas esotéricas”. Mantive a Ilíada de Homero em minha mesa o verão inteiro, embora olhasse suas páginas somente de vez em quando. O trabalho incessante com as mãos, de início, pois tinha de acabar minha casa e carpir meus feijões ao mesmo tempo, impossibilitava maiores estudos. Porém eu me sustentava com a perspectiva dessa leitura no futuro. Li um ou dois livros de viagem superficiais nos intervalos de meu trabalho, até que essa atividade me deixou envergonhado de mim mesmo, e perguntei onde é que, afinal, eu vivia.

O estudioso pode ler Homero ou Ésquilo em grego sem risco de luxo ou dissipação, pois isso implica que, em alguma medida, ele emula seus heróis e consagra horas matinais a suas páginas. Os livros heroicos, mesmo impressos no alfabeto de nossa língua materna, sempre estarão numa língua morta para tempos degenerados; e precisamos buscar laboriosamente o significado de cada palavra e verso, conjeturando, a partir da sabedoria, do valor e da generosidade que tivermos, um sentido mais amplo do que permite o uso comum. A imprensa moderna, fértil e barata, com todas as suas traduções, pouco tem feito para nos aproximar dos autores heroicos da antiguidade. Eles parecem tão solitários, e a letra em que estão impressos tão rara e curiosa, como sempre. Vale a pena gastar horas preciosas e dias juvenis para aprender algumas palavras de uma língua antiga, que são alçadas da trivialidade das ruas para se tornar fonte perpétua de sugestões e estímulos. Não à toa o agricultor lembra e repete as poucas palavras em latim que ouviu. Os homens às vezes falam como se o estudo dos clássicos tivesse aberto caminho para estudos mais modernos e práticos; mas o estudante aventuroso sempre estudará os clássicos, em qualquer língua que possam estar escritos e por mais antigos que possam ser.