A carruagem (1836)

A carruagem

quadrado mágico

Nikolai Gógol

A carruagem

Tradução de Arlete Cavaliere

logo Editora 34

Nikolai Gógol

Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852) é autor de alguns dos contos mais famosos da literatura russa, dentre os quais “O nariz”, “Diário de um louco” e “O capote”, que foi transformado em um dos pontos de partida da dinâmica literária russa por autores como Bielínski e Dostoiévski (neste caso, porém, a famosa frase atribuída a ele sobre a descendência de “O capote” é de autoria do crítico francês Melchior de Vogüé). Gógol é uma referência fundamental para correntes muito variadas da literatura russa, embora inclassificável e sempre fugidio. Esta antologia apresenta uma boa oportunidade para lermos um conto excelente e menos antologizado. “A carruagem”, publicado em 1836 na revista O Contemporâneo, é uma espécie de tesouro particular dos apreciadores do escritor russo. Lendo esse conto, Tchekhov declarou, em uma carta a Suvórin, que Gógol era o “maior artista russo”. Outra opinião de peso: Tolstói considerava “A carruagem” um ponto alto da ficção gogoliana. (Nota de Bruno Barretto Gomide)

A carruagem

A cidadezinha de B... ficou muito animada quando lá se aquartelou o regimento de cavalaria de ... Até então, reinava o mais profundo tédio. Quando a gente passava e olhava as casinhas caiadas e baixas, que espiavam a rua com ar de extremo azedume, então... não, é impossível expressar o que acontecia no coração: tamanha melancolia como se a gente tivesse perdido tudo no jogo ou deixado escapar alguma asneira sem propósito. Em uma palavra: não era nada agradável.

Por causa da chuva, a cal se desprendia das paredes, que, de brancas, se tornaram pardas; o junco recobria a maior parte dos telhados, como ocorre na maioria de nossas cidades do sul, e quanto aos jardins, o prefeito há muito tempo ordenara cortar tudo para dar melhor aparência. Nas ruas não se via alma viva, apenas um galo às vezes atravessava a calçada, como se ela fosse macia como um travesseiro recoberto de poeira e que sob a mínima chuva se transforma em lama. E então, as ruas da cidadezinha de B... se enchiam daqueles animais corpulentos, que o prefeito local chamava de franceses.1 E focinhos com ar grave surgiam dos charcos, emitindo um grunhido tal que ao viajante de passagem restava apenas fazer apressar ainda mais os cavalos. De resto, era bem difícil encontrar um viajante na cidadezinha de B...

De vez em quando, bem de vez em quando mesmo, algum proprietário de terras em sobrecasaca de algodão e dono de uma dúzia de almas se arrastava pela rua por entre um montão de sacos de farinha, em um tipo de carro meio britchka e meio telega, fustigando uma égua baia, seguida por um potro. A própria praça do mercado tinha um aspecto bem tristonho. A casa do alfaiate dava para ela de modo bem esquisito: não a fachada toda, mas só uma quina. Bem em frente, ia se construindo há quinze anos um edifício de pedra com duas janelas; um pouco mais adiante, havia uma paliçada moderna em madeira pintada de um cinza sujo, erguida pelo prefeito para servir de modelo às outras construções, no tempo de sua juventude, quando ele ainda não tinha o hábito de dormir logo depois do almoço e de beber à noite alguma beberagem à base de groselhas secas. Nos outros lugares, quase só cercas. No meio da praça, umas lojinhas minúsculas, onde se podia ver um punhado de rosquinhas, uma mulher de xale vermelho, um pud2 de sabão, mais um tanto de amêndoas amargas, balas de chumbo, gêneros de algodão e dois comerciantes que passavam o tempo todo a jogar svaika3 perto da porta.

Mas tudo mudou desde que o regimento de cavalaria se aquartelou na cidadezinha de B... As ruas se tornaram mais coloridas, mais vivas, quer dizer, adquiriram um aspecto bem diferente. As casinhas baixas veem passar com frequência um garboso e esbelto oficial com um penacho na cabeça, caminhando em direção a um camarada qualquer para conversar sobre a promoção na carreira, sobre o melhor tabaco, ou às vezes apenas para apostar no jogo, às escondidas do general, uma drojki, que se poderia chamar “a drojki do regimento”, pois, sem sair do regimento, passava o tempo todo de mão em mão: hoje um major vai passear nela, amanhã ela vai aparecer na estrebaria do tenente, uma semana depois, lá está ela nas mãos do ordenança do major, que de novo a besunta com sebo. A cerca de madeira entre as casas despontava toda coberta com bonés de soldados, pendurados sob o sol; em algum lugar nos portões nunca deixava de pender também um capote cinza e nas ruelas sempre se tropeçava com soldados munidos de bigodes tão rijos, que mais pareciam escovas de limpar sapatos.

Tais bigodes podiam ser vistos por toda parte. Era só algumas mercadoras com baldes se reunirem no mercado, e os bigodes logo surgiam atrás de seus ombros. Os oficiais deram vida à sociedade, que até então consistia apenas no juiz, que vivia em uma casa com certa diaconisa, e no prefeito, homem sensato, mas que dormia categoricamente o dia inteiro: do almoço até a noite e da noite até o almoço. A sociedade se tornou ainda mais populosa e mais divertida quando o general da brigada transferiu para lá o seu quartel-general. Os proprietários de terra dos arredores, de que ninguém até então poderia supor a existência, se tornaram mais frequentes naquela cidadezinha provinciana, com o fim de se encontrar com os senhores oficiais e, quem sabe, jogar a banca, jogo com o qual apenas haviam sonhado vagamente, assoberbados que estavam com semeaduras, coelhos e as incumbências de suas mulheres.

É uma pena que não me recorde exatamente por qual motivo aconteceu de o general da brigada oferecer um grande almoço. Os preparativos foram imensos: o barulho das facas dos cozinheiros na cozinha do general podia ser ouvido até próximo das fronteiras da cidade. O mercado todo foi reservado para o almoço, de modo que o juiz e sua diaconisa tiveram que comer tão somente uma panqueca de farinha de trigo e creme de fécula. O pequeno pátio da casa do general estava repleto de carruagens e drojkis.