O médico, cheio de dignidade, morreu em 1805. Só Deus sabe o quanto a burguesia de Issoudun falou a seu respeito e quantas anedotas circularam a propósito de sua horrível vida privada. João-Jaques Rouget, a quem o pai acabara controlando com rigor por descobrir-lhe a sua estupidez, ficou solteiro por graves razões, cuja explicação constitui uma parte importante desta história. Seu celibato foi, em parte, causado por culpa do doutor, como se verá mais tarde.
Agora é necessário examinar os efeitos da vingança exercida pelo pai sobre uma filha que ele não considerava sua e que, podeis estar certos, lhe pertencia legitimamente. Ninguém notara em Issoudun um desses fatos singulares que fazem da hereditariedade um abismo no qual a ciência se afunda. Ágata parecia-se com a mãe do dr. Rouget. Do mesmo modo que, segundo uma observação vulgar, a gota pula uma geração e se transmite do avô ao neto, não é raro ver a semelhança comportar-se como a gota.
Assim, o mais velho dos filhos de Ágata, que se parecia com a mãe, herdou a moral do dr. Rouget, seu avô. Releguemos a solução desse outro problema ao século XX com uma bela nomenclatura de animálculos microscópicos e nossos sobrinhos hão de escrever, talvez, tantas asneiras quantas as nossas sociedades sábias já têm escrito sobre essa tenebrosa questão.
II — A FAMÍLIA BRIDAU
Ágata Rouget recomendava-se à admiração de todos por um desses rostos destinados, como o de Maria, mãe de Nosso Senhor, a permanecer sempre virgens, mesmo após o casamento. Seu retrato, que ainda se conserva na sala de trabalho de Bridau, mostra um oval perfeito, uma alma inalterada e sem o menor vestígio de sardas, apesar de sua cabeleira dourada. Mais de um artista, ao observar a fronte pura, a boca discreta, o nariz fino, as belas orelhas, longos cílios nos olhos e olhos dum azul-escuro infinitamente ternos, enfim, o rosto cheio de placidez, pergunta agora ao nosso grande pintor: — É a cópia duma cabeça de Rafael? Nunca um homem foi mais bem inspirado do que o chefe de gabinete ao desposar essa moça. Ágata realizou o ideal da dona de casa educada na província e que nunca se afastou da mãe. Piedosa sem ser devota, não tinha outra instrução além da que a Igreja dá às mulheres. Assim, foi uma esposa perfeita no sentido vulgar da palavra, pois sua ignorância das coisas da vida foi responsável por mais de uma desgraça. O epitáfio duma célebre romana: “Bordou e cuidou da casa” resume admiravelmente essa existência pura, simples e tranquila. Desde o Consulado, Bridau ligou-se fanaticamente a Napoleão, que o nomeou chefe de divisão em 1804, um ano antes da morte de Rouget. Percebendo doze mil francos de ordenado além de belas gratificações, Bridau não se importou com os vergonhosos resultados da liquidação que se fez em Issoudun e pela qual Ágata não recebeu nada. Seis meses antes de morrer, Rouget vendera ao filho uma parte de seus bens, sendo o resto transferido a João-Jaques, tanto a título de doação por preferência como a título de herdeiro. Um adiantamento de herança, de cem mil francos, feito a Ágata por ocasião do contrato de casamento, representava sua parte na herança dos pais. Idólatra do imperador, Bridau serviu com a dedicação dum fanático as poderosas concepções desse semideus moderno que, tendo encontrado tudo destruído na França, quis reorganizar tudo. Nunca o chefe de divisão dizia: “Basta!”. Projetos, apontamentos, relatórios, estudos, aceitou os mais pesados fardos, tão feliz se sentia em secundar o imperador; prezava-o como homem, adorava-o como soberano e não tolerava a mínima crítica sobre seus atos nem sobre seus planos. De 1804 a 1808, o chefe de divisão morou num grande e belo palacete do Quai Voltaire, a dois passos do ministério e das Tuileries. Uma cozinheira e um criado faziam todo o serviço da casa na época do esplendor da sra. Bridau. Ágata, que era sempre a primeira a levantar-se, ia ao mercado acompanhada da cozinheira. Enquanto o criado arrumava a casa, ela tratava do almoço. Bridau nunca ia para o ministério antes das onze horas. Enquanto durou sua união, a esposa experimentou o mesmo prazer em preparar-lhe um almoço excelente, única refeição que Bridau fazia com prazer.
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