No prefácio que antecedia a primeira edição de “Um grande homem da província em Paris”, o romancista fez questão de salientar que não se tratava de um acaso e que o seu libelo obedecia a um intuito bem definido:

 

Os costumes do jornal constituem um desses assuntos imensos que exigem mais de um livro e de um prefácio. Aqui o autor pintou os começos da doença que atingiu nos dias de hoje o seu completo desenvolvimento. Em 1821, o jornal encontrava-se em suas vestes de inocência comparado com o que é em 1839. Se, porém, o autor não pode abraçar a chaga em toda a extensão, tê-la-á, pelo menos, enfrentado sem medo.

 

É preciso, porém, observar com Antoine Adam, prefaciador do romance na edição Garnier (1956), que em seus retratos tão admiráveis do jornalista, Balzac não visava a identificabilidade; seu fito não era vingar-se nesse ou naquele indivíduo, mas esboçar um quadro geral exato e fiel. A comparação entre o texto impresso e o manuscrito mostra como ele procurava obliterar os indícios identificadores. Para cada uma dessas personagens tão vivas, dez pessoas reais contribuíram com um traço de caráter ou um dito revelador. Elas eram mais que verdadeiras: eram reais. Sua observação divinatória permitiu-lhe antever o imenso poder concentrado nas mãos do jornalista, e com o seu pessimismo inato descobriu todos os abusos a que esse poder se prestava. Mais uma vez, o escritor pegou in statu nascendi uma das instituições essenciais do século xix, quando ninguém lhe percebia ainda a importância transcendental. É curioso notar quais os termos da gíria jornalística — então neologismos — que Balzac acha necessário explicar: chantage, canard, réclame, três palavras em que se resumem precisamente as maiores ameaças da imprensa imoral.

No mesmo prefácio, o autor proclama bem alto que está em ótimas condições para pronunciar esse requisitório contra os jornais, pois “pertence ao reduzido número daqueles que não devem agradecimentos ao jornalismo e nunca lhe pediram nada; fez o seu caminho sem se apoiar nesse bastão pestífero; uma das suas vantagens consiste em ter sempre desprezado essa hipócrita tirania, em não ter implorado artigo algum a pena alguma, em nunca ter sacrificado em reclamos inúteis escritores imortais para deles fazer o pedestal de algum livro que, nas condições atuais, não tem seis semanas de vida”. E continua nesse mesmo tom, sem papas na língua, qualificando os jornais de “câncer que talvez devore o país”, para depois chamá-los, dentro do romance, “lupanares do pensamento”.

Muitos perceberão com espanto que o escritor, longe de reclamar a liberdade da imprensa, exige rigorosas medidas coercitivas do governo contra ela. Além do ressentimento de talento vilipendiado e das reminiscências de monarquista neófito, que não esqueceu ainda o papel preponderante da imprensa na queda dos Bourbon, há nessa atitude uma convicção quase mística de que o jornalismo é uma verdadeira doença, que infecciona fortemente todos os que nele se metem. Segundo uma observação sagaz de Alain (Avec Balzac), mesmo os escritores que Balzac apresenta como caracteres sem mancha, idealistas abnegados e heróis da vontade deixam-se envolver pelas praxes condenáveis inerentes à profissão. “O grande D’Arthez não é menos sofista no fundo, pois se diverte em enfeitar o romance de Luciano sem crer no que faz, e chega, nos dias mais sombrios, a levar a cabo a tarefa de sua própria destruição, tão miseravelmente tentada por Luciano.”

A idiossincrasia de Balzac pelos jornalistas não era, aliás, muito diferente da antipatia que lhes manifestaram os governos da Restauração, como mostra o plano de “amortização dos jornais” do gabinete Villèle, que consistia em não autorizar mais nenhum jornal novo e extinguir os outros progressivamente, indenizando-lhes os proprietários.

Um contemporâneo de Balzac, Hippolyte Castille, relata uma observação do romancista que nos mostra como ele aferrou bem o aparecimento do novo tipo da sociedade e suas múltiplas atividades.

 

Um homem de muito espírito que interessou singularmente as gerações do reino de Luís Felipe, mas que, embora divertindo o público, fez mais mal do que se pensa, o sr. de Balzac, gostava de aproximações. Dizia que o jornalista era no século xix o que foi no xviii a personagem de comédia que se chamava o abade. O abade era um ser de pouca importância, que se introduzia por toda parte, um furão, um camaleão, um ser impossível a aferrar e no entanto sempre ele mesmo, no qual, contudo, se podiam encontrar Júpiter ou Scapin, grande homem, às vezes, financista como Terray, reformador como Sieyès ou fazedor de madrigais como Bernis. O abade trazia o cachorrinho da marquesa ou derrubava um trono. Parasita, rufião ou grande homem, encontravam-no por toda parte: na Corte, na cidade, nos toucadores, na tribuna, no fundo de uma fazenda ou na academia. O jornalista, como o abade, é no século xix uma das primeiras personagens da comédia humana. Voga através dessa sociedade como um ser sem pousada, que se sente sempre em casa. Erra entre o palácio e a mansarda. Ministro hoje, banqueiro amanhã, filósofo sempre e, como Fígaro, superior aos acontecimentos. (Les Journaux et le journalisme sous l’Empire et sous la Restauration, 1858)

 

Feito o desconto dos exageros resultantes do preconceito, deve-se reconhecer que Balzac conhecia admiravelmente bem os segredos do jornal e deu uma série de retratos de redatores e diretores — Lousteau, Blondet, Vernou, Finot —, cada um dos quais é uma obra-prima. Nada falta do fresco, nem as transações e manigâncias suspeitas da administração, nem as interferências externas (tanto as da Corte como as das cortesãs), nem as campanhas de vingança, nem a agiotagem sobre as entradas de teatro e os livros oferecidos aos críticos. O poder desmoralizador da publicidade — que nem tinha nome então — é adivinhado e desmascarado pela primeira vez.

Pelas ramificações do jornalismo chegamos a outros ambientes: o da indústria editorial e o comércio dos livros, o dos teatros — admirável ocasião para se olhar “atrás dos bastidores” —, o da política conluiada com a imprensa, o da aristocracia conluiada com a política. Por trás de tudo, o dinheiro agindo desavergonhada e impiedosamente...

Aparecem, pois, neste livro imenso, quase todos os ambientes de Balzac, e não é pouco. Quase todos os assuntos também: a ambição; a monomania; o amor sob várias formas (o da mulher madura ao adolescente, o da cortesã ao rapaz bonito, o da esposa ao marido); as lutas do gênio com o ambiente; a conspiração da sociedade contra o indivíduo saído de sua esfera; as alegrias e as misérias da glória; a luta das gerações; a vingança do amor-próprio ferido; o grande tema de Paris; a chaga enorme devorando a França...

Bem balzaquiano também o título, tão característico do escritor que poderia formar o subtítulo de toda A comédia humana. Em todo romance de Balzac há uma hecatombe de ilusões, mortas pela experiência dolorosa do protagonista. E, quando a experiência por si só não basta, vêm os porta-vozes do romancista trazendo sua decepcionante interpretação do ambiente literário, de Paris, da política, das mulheres, do mundo.