D’Arthez explica as tribulações dos grandes homens que não querem transigir com o vício; Lousteau desvenda a hedionda realidade da vida literária; Blondet proclama a doutrina do maquiavelismo parisiense: o relativismo da verdade e das opiniões; por fim, o misterioso cônego espanhol — no qual os leitores experimentados não deixarão de reconhecer uma figura familiar — tira as conclusões de tudo, colocando face a face sociedade e indivíduo como dois inimigos.
O mais balzaquiano de todos os romances, Ilusões perdidas o é sobretudo pelo muito que nos revela acerca do próprio Balzac. Essa afirmação poderia levar-nos à desconfiança, pois já vimos o escritor sair-se bastante mal no romance autobiográfico. Em Alberto Savarus o lirismo falseou a visão do romancista, destruiu-lhe a objetividade e o fez desrespeitar a verossimilhança, porque o autor cometeu o erro de identificar-se completamente com uma das personagens. Em Ilusões perdidas ele infunde quinhão bem maior de sua experiência íntima, mas o erro não se repete, pois, em lugar de haver um procurador do romancista, aparece uma série de personagens alimentadas com o seu sangue.
Há primeiro o par Luciano-D’Arthez. “Ilusões perdidas são no âmago a discussão de Balzac consigo mesmo”, lemos no belo livro póstumo de Stefan Zweig sobre Balzac. “Nessa obra Balzac apresenta em duas personagens o que será ou poderá ser um escritor se este persistir rigorosa e fielmente em si e em sua obra ou se ceder à tentação de uma celebridade rápida e indigna. Luciano de Rubempré é o seu perigo mais íntimo, e Daniel D’Arthez, o seu mais íntimo ideal. Balzac conhece a duplicidade de sua natureza, sabe que nele existe latente um escritor que de maneira inviolável aspira ao máximo, recusa a si toda concessão, repele todo acordo e está inteiramente só no meio da sociedade. Mas do mesmo modo reconhece a sua segunda natureza, reconhece em si o folgazão, o pródigo, o aristocrata, o escravo do dinheiro, o indivíduo que constantemente incorre em pequenas seduções do luxo. A fim de agora se fortalecer, a fim de energicamente apresentar aos seus olhos o perigo que ameaça um escritor que trai a sua arte por desejar o êxito na época, para advertência pinta para si um desses escritores que não resistem e que, cedendo à sedução, perdem todo o controle.” O contraste, porém, é mais complexo ainda, pois Balzac, com todo o seu desprezo por esse eu reprimido que é Luciano, reveste-o de um invólucro divinamente belo e às vezes deixa-se ficar em sua presença numa atitude de involuntária adoração.
A linha política adotada por D’Arthez, a sua teoria do gênio como resultado da paciência são com efeito bem características de Balzac. Quanto a Luciano, vários episódios de sua vida em Paris assemelham-se a casos acontecidos ao romancista no começo de sua carreira, coincidências apontadas em notas da presente edição. Por outro lado, um conhecimento mesmo supérfluo da biografia de Balzac permite descobrir numerosas semelhanças entre esta e as lutas do tipógrafo David Séchard, que lembra o seu criador até na aparência física. Contamos já as vicissitudes da tipografia de Balzac, onde o escritor com vinte e tantos anos se endividou para o resto de sua vida, assim como suas malogradas tentativas de inventor nos setores mais variados, pois, como seu herói, era “capaz de descobrir uma mina de ouro, mas singularmente incapaz de explorá-la”. Respondendo em suas cartas às censuras da condessa Hanska, que lhe estranhava os planos loucos e os empreendimentos irreais, Balzac negava desesperadamente que lhe faltasse senso prático; no episódio de Séchard temos, porém, a prova de que o reconhecia de si para si. Mas David Séchard é sobretudo mais um desdobramento do idealismo balzaquiano, oposto às seduções da ambição e da vida luxuosa que arrastam Luciano-Balzac à sua perda.
Além dessas três projeções de sua vida múltipla, Balzac encarnou mais um de seus fantasmas íntimos em uma quarta personagem, o rev. Carlos Herrera. A moral desse discípulo de R. P. Escobar é bastante perigosa para que Balzac ache útil combatê-la no prefácio (mais de uma vez os prefácios lhe serviam para remendar o que nos próprios romances não lhe parecia concordar com as suas atitudes de político legitimista e clerical), mas é exposta com eloquência tão arrebatadora que é impossível não reconhecer nela uma manifestação do próprio autor. O cônego, em suma, reforça em Luciano suas cômodas teorias de “imperialismo estético” (Ernest Seillère), em virtude das quais o gênio é uma espécie de super-homem e está acima de todas as leis, teorias que Balzac nunca deixou de aplicar a si mesmo. Pouco importa, pois, que o autor resuma assim a moralidade de Ilusões perdidas: “Só aos espíritos de escol, às pessoas de uma força hercúlea é permitido abandonar o teto protetor da família para irem lutar na imensa arena de Paris”; cada Luciano de Rubempré se julga um desses espíritos de escol.
Para que procurar, aliás, outra moral além da que a obra de arte contém pelo fato de ser legítima? A derrota de Luciano não prova nada, pois, segundo as sugestões de uma ambição não menos ávida e pouco mais escrupulosa, Rastignac, outro espécime do mesmo tipo, venceu. Esta comparação impõe-se. No inteligente prefácio de sua edição crítica de “Os dois poetas”, Gilbert Mayer estabelece longo e convincente paralelo entre essas duas personagens (esquecendo, contudo, a coincidência mais surpreendente que as faz uma e outra encarar Paris do alto do Père-Lachaise, onde acabam de enterrar, com um ser querido, suas últimas ilusões) e afirma com razão que “semelhante desdobramento de personagens num autor cujo poder criador era fantástico merece exame particular. Teria ele a possibilidade de produzir-se, caso Balzac não tivesse posto, nesses destinos quase paralelos, grande parte do seu?”.
As outras personagens do romance tiveram, pelo menos em parte, seus modelos na vida real. O romancista conhecia bem Angoulême, onde várias vezes fora visitar o casal Carraud; ao escrever o romance, lembra-se ainda de pedir à sra. Zulma Carraud esclarecimentos topográficos. Na época dessas visitas a cidadezinha tinha o seu salão literário, cuja dona, uma sra. de Saint-Surin, parece ter inspirado a figura da sra. de Bargeton não somente quanto às suas ambições intelectuais como também nas vicissitudes de sua vida conjugal. Em seus passeios pela cidade, o romancista conversou com um camponês chamado Séchard e alcunhado Chardon, que lhe fornecia assim os nomes dos dois amigos, cujas figuras, como já dissemos, tirou de si mesmo; os pesquisadores não encontraram originais de Luciano e de David.
Quanto ao ambiente literário de Paris, numerosos escritores e jornalistas foram apontados como originais das caricaturas ferinas de Balzac.
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