Embora o escritor tenha afirmado a um amigo que a figura de Lousteau lhe fora sugerida pela de Jules Sandeau, o público reconhecia nela Jules Janin, um dos críticos mais importantes da época e que teimava em menosprezar o autor de Cenas da vida provinciana. (Jules Sandeau, efebo talentoso e efeminado, a quem mais tarde sua ligação e seu rompimento com George Sand tornariam famoso, teve, no momento de sua estreia, a ajuda eficiente de Balzac, que o empregou como secretário e o alojou em sua casa, mas teve de despedi-lo devido a sua preguiça e incompetência. Os biógrafos suspeitam a existência, entre os dois, de relações homossexuais. Por encomenda de Balzac, Sandeau escreveu uma biografia fictícia de Horace de Saint-Aubin, pseudônimo com que o romancista assinara suas obras de mocidade.) Seja como for, Janin reagiu como se realmente se reconhecesse em Lousteau, e, numa análise raivosa de Ilusões perdidas, desancou o autor: “Um escritor não é um trapeiro, um livro não se enche como um cesto... Felizmente este livro é do grande número de romances que a gente não lamenta absolutamente não ler, que aparecem hoje para desaparecer amanhã num esquecimento imenso. Nunca, com efeito, o pensamento do sr. Balzac foi mais difuso, sua intenção mais fraca, seu estilo mais incorreto”. Outros reconheceram Émile de Girardin em Finot, Léon Gozlan em Nathan, Gustave Planche em Vignon. Nas notas de rodapé indicaremos algumas dessas identificações, embora para os leitores de hoje ofereçam interesse bem menor do que deviam ter para os contemporâneos de Balzac.
Entre os exegetas mais recentes do livro, Claude Mauriac assinala com muita finura o que Ilusões perdidas ganha pelas suas ligações íntimas com outras obras de A comédia humana. O leitor versado em Balzac compreende melhor a recepção inesperadamente boa que a orgulhosa marquesa d’Espard faz a duas pessoas tão pouco interessantes como Luís de Bargeton e o barão du Châtelet: a primeira se beneficia de seu parentesco com o marquês d’Espard, a quem a esposa está processando (pois tratando bem aos parentes do marido poderia fazer crer que não moveu o processo por simples antipatia ou capricho); o segundo, de sua qualidade de antigo companheiro de Montriveau, a quem seu caso com a duquesa de Langeais conferiu imenso prestígio; quer dizer, A interdição e A história dos Treze esclarecem melhor certos trechos à primeira vista indiferentes de Ilusões, mostrando neles complexidades e profundezas insuspeitadas. Poder-se-ia continuar essa demonstração assinalando também o que este último romance traz de revelador para outras partes do ciclo. Como, por exemplo, compreendemos melhor, depois de conhecer o retrato de Lousteau em Ilusões, seu procedimento com a sra. de La Baudraye em A musa do departamento! Tudo em A comédia humana se esclarece e é esclarecido; as diversas partes ligam-se como perfeitas engrenagens.
Há alguns balzaquianos, aliás, que gostariam que essa interdependência fosse menor. Gilbert Mayer elogia Ilusões precisamente porque nele “Balzac não prefere ainda o mundo fictício de A comédia humana ao mundo real... A ficção ainda levou vantagem e a história das personagens e de suas aventuras não se impõe ainda totalmente... aqui não se sente Balzac mais preocupado com as suas personagens do que com a representação da sociedade do seu tempo”.
Vê-se que esses dois críticos elogiam o romance por motivos diametralmente opostos. Os leitores concordarão com um ou com outro, o que pouco importa se eles também chegam a sentir a admiração pelo autor e pela obra, único traço comum nas duas interpretações.
Que o gênio de nosso escritor, além de um afresco grandioso do ambiente literário de sua época, criou tipos universais prova-o um artigo espirituoso de Guilherme Figueiredo (“Um dia depois do outro”, O Jornal, 17 de abril de 1966), em que compara aos ambiciosos de Balzac os membros audaciosos do “exército do Pará” de nossos dias; ao assalto das editoras do Rio.
Terminemos com Antoine Adam: “Esse romance, tomado em seu conjunto, forma uma das culminâncias de A comédia humana. Em parte alguma aparecem melhor, com mais força e pureza, as características do gênio balzaquiano, o dom de compreender o real, de penetrar até as forças secretas que o dominam e de reconstruí-lo depois num universo novo”.
paulo rónai
ILUSÕES PERDIDAS
AO SR. VICTOR HUGO[1]
Vós, que, pelo privilégio dos Rafael e dos Pitt, éreis já um grande poeta na idade em que os homens são ainda crianças, lutastes, como Chateaubriand e como todos os verdadeiros talentos, contra os invejosos emboscados por trás das colunas ou acocorados nos subterrâneos dos jornais. Desejo, assim, que o vosso nome triunfante auxilie a vitória desta obra que vos dedico, e que, segundo alguns, constituiria um ato de coragem tanto como uma história plena de verdade. Os jornalistas não teriam pertencido, acaso, a Molière e ao seu teatro, como os marqueses, os financistas, os médicos e os procuradores? Por que então A comédia humana, que castigat ridendo mores,[2] haveria de excetuar uma potência, quando a imprensa parisiense não excetua nenhuma?
Sinto-me feliz, senhor, de poder subscrever-me
Vosso sincero admirador e amigo,
DE BALZAC
PRIMEIRA PARTE • OS DOIS POETAS
PRIMEIRA PARTE
OS DOIS POETAS
I – UMA TIPOGRAFIA DE PROVÍNCIA
Na época em que começa esta história,[3] a impressora de Stanhope[4] e os rolos de distribuição de tinta não funcionavam ainda nas pequenas tipografias de província. Não obstante a especialidade que a põe em relação com a tipografia parisiense,[5] Angoulême ainda se servia de prensas de madeira, às quais a língua deve a expressão “fazer gemer os prelos”, atualmente sem aplicação.
A arte tipográfica atrasada empregava ainda ali almofadas de couro repassadas de tinta, com as quais um dos impressores batia os tipos. A plataforma móvel em que se coloca a fôrma cheia de letras, sobre a qual se aplica a folha de papel, era ainda de pedra e justificava o seu nome de mármore. As devoradoras prensas mecânicas fizeram hoje tão completamente esquecido aquele mecanismo a que devemos, não obstante suas imperfeições, os belos livros dos Elzevier, dos Plantin, dos Aldo e dos Didot,[6] que se torna necessário lembrar os velhos utensílios aos quais Jerônimo Nicolau Séchard consagrava supersticiosa afeição, pois têm eles o seu papel nesta grande pequena história.
Esse Séchard era um antigo oficial tipógrafo dos que, na sua gíria tipográfica, os obreiros encarregados de juntar as letras chamam de ursos. O movimento de vaivém, muito semelhante ao de um urso enjaulado, pelo qual os impressores iam da prensa ao tinteiro e do tinteiro à prensa, lhes valera, sem dúvida, tal apelido. Por vingança, os ursos chamavam os tipógrafos de símios, por causa do contínuo exercício que fazem esses senhores para tirar as letras dos cento e cinquenta e dois caixotins em que se encontram.
Na desastrosa época de 1793, Séchard, na idade de mais ou menos cinquenta anos, estava casado. A idade e o casamento permitiram-lhe escapar à grande convocação que levou quase todos os operários às fileiras do Exército. O velho impressor ficara só na tipografia cujo dono, chamado então Bobo, acabara de morrer deixando viúva sem filhos. O estabelecimento pareceu ameaçado de destruição imediata: o urso solitário era incapaz de se transformar em símio, pois, na sua qualidade de impressor, nunca aprendera a ler e escrever.
Sem ter em conta a sua incapacidade, um Representante do Povo, apressado em espalhar os belos decretos da Convenção, investiu o manejador de prensas na patente de mestre impressor e requisitou-lhe a tipografia.
Após aceitar aquele perigoso diploma, o cidadão Séchard indenizou a viúva do patrão levando-lhe as economias da esposa, com as quais pagou o material da tipografia pela metade do valor. Isso não era nada. Tinha de imprimir sem erro nem demora os decretos republicanos.
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