A Revolução varrera a família; dela restou, porém, uma única velha e teimosa representante que não quisera emigrar; que, presa, ameaçada de morte e salva a 9 de Termidor,[17] recuperara seus bens. Fez voltar em tempo útil, lá por 1804, seu neto Augusto de Maulincour, último dos Charbonnon de Maulincour, que foi educado pela boa senhora com tríplices cuidados de mãe, de nobre dama e de chefe de família. Depois, quando veio a Restauração, o jovem, então com dezoito anos, entrou para a Casa Vermelha,[18] acompanhou os príncipes a Gand,[19] foi feito oficial da escolta, de onde saiu para servir nas forças de linha; foi depois chamado para a Guarda Real, onde se encontrava então, aos vinte e três anos, chefe de esquadrão de um regimento de cavalaria, posição soberba, devida à avó, que, não obstante a idade, conhecia muito bem seu mundo. Esta dupla biografia é o resumo da história geral e particular, salvo variantes, de todas as famílias que emigraram, que possuíam dívidas e bens e velhas parentes ricas de trato social.
A sra. baronesa de Maulincour tinha como amigo o velho vidama de Pamiers, antigo comendador da Ordem de Malta. Era uma dessas amizades eternas fundadas em laços sexagenários, que nada pode matar, porque no fundo dessas relações há sempre segredos do coração humano, admiráveis de se adivinhar quando se tem tempo, mas insípidos de explicar em vinte linhas e que dariam uma obra de quatro volumes, interessantes como podem sê-lo os de O deão de Killerine,[20] uma dessas obras de que falam os moços, julgando-as sem nunca as ter lido.
Augusto de Maulincour pertencia, pois, ao Faubourg Saint-Germain[21] por sua avó e pelo vidama, e era-lhe suficiente datar o nome de dois séculos para tomar os ares e as opiniões dos que pretendem remontar até Clóvis.[22] Aquele rapaz pálido, alto e delgado, de aparência delicada, homem de honra e de verdadeira coragem, que se batia em duelo por um sim ou por um não, não se vira ainda em nenhum campo de batalha, mas trazia à lapela a cruz da Legião de Honra. Era, como se vê, uma das culpas vivas da Restauração, talvez a mais perdoável.
A juventude daquele tempo não foi a juventude de época alguma: encontrou-se entre as recordações do Império e as lembranças do exílio, entre as velhas tradições da Corte e os estudos conscienciosos da burguesia, entre a religião e os bailes de máscaras, entre duas correntes políticas, entre Luís xviii, que só via o presente, e Carlos x, que via longe demais, obrigada a respeitar a vontade do rei ainda que a realeza se enganasse.
Essa juventude incerta a respeito de tudo, cega e clarividente, não foi levada em conta absolutamente pelos velhos ciosos de guardar em suas mãos débeis as rédeas do Estado, enquanto a monarquia poderia ter sido salva pela sua exoneração e com o acesso ao poder dessa jovem França da qual mofam ainda os velhos doutrinários, imigrados da Restauração.
Augusto de Maulincour era vítima das ideias que pesavam então sobre a mocidade e eis aqui o porquê: o vidama era ainda, aos sessenta e sete anos, um homem de espírito que muito vira e muito vivera, bom conversador, homem de honra, cavalheiresco, mas conservava a respeito das mulheres as opiniões mais detestáveis: amava-as e desprezava-as. Quanto à honra e aos sentimentos das mulheres? Histórias, bagatelas, momices! Junto das mulheres, outrora monstros, nelas confiava, não as contradizia nunca, gabava-as. Entre amigos, porém, ao vir o assunto à discussão, o vidama sustentava o princípio de que enganar as mulheres, conduzir várias intrigas amorosas a um tempo devia ser toda a ocupação dos rapazes, que se desencaminhavam ao querer meter-se nos negócios do Estado. É desagradável ter-se de traçar retrato tão antiquado. Não figurou ele por toda parte? E, literalmente, não está quase tão gasto como o de um granadeiro do Império? Mas o vidama teve sobre o destino de De Maulincour tal influência que é necessário assinalá-la; ele o moralizava a seu modo e queria convertê-lo às doutrinas do grande século da galanteria.
A avó, mulher terna e piedosa, posta entre o vidama e Deus, modelo de graça e doçura, mas dotada de uma persistência de bom gosto que de tudo triunfava com o tempo, quis conservar no neto as belas ilusões da vida, e educou-o nos melhores princípios; transmitiu-lhe todas as suas finuras e fez dele um homem tímido, verdadeiro tolo na aparência. A sensibilidade do rapaz conservada pura não se gastou exteriormente, e ele permaneceu tão pudico, tão cheio de melindres, que o ofendiam vivamente atos e palavras a que a sociedade não dava importância alguma. Envergonhado de tal suscetibilidade, o rapaz procurava escondê-la sob uma falsa confiança, e sofria em silêncio; e ria, com os outros, das coisas que só ele admirava.
Desse modo enganou a si próprio, pois, segundo um capricho muito comum do destino, encontrou no objeto de sua primeira paixão, ele, o homem das doces melancolias, espiritualista no amor, uma mulher que abominava o sentimentalismo alemão. O jovem duvidou de si mesmo, tornou-se sonhador e mergulhou nos seus pesares, lamentando-se por não ser compreendido. Depois, como desejamos mais violentamente as coisas que nos são mais difíceis de alcançar, continuou a adorar as mulheres com essa engenhosa ternura, essas felinas delicadezas, cujo segredo lhes pertence e do qual querem talvez conservar o monopólio.
E realmente, embora as mulheres se queixem de ser mal-amadas pelos homens, gostam pouco, todavia, daqueles cuja alma é meio feminina. Toda a sua superioridade consiste em fazer crer aos homens que eles lhe são inferiores no amor; abandonam assim muito satisfeitas um namorado bastante inexperiente para lhes arrebatar os temores com que se querem enfeitar: os deliciosos tormentos do falso ciúme, as perturbações da esperança enganada, as vãs esperas, enfim todo o cortejo de suas boas fraquezas femininas têm horror aos Grandisson.[23] Que haverá de mais contrário à sua natureza que um amor perfeito e sossegado? Querem é emoções, e a felicidade sem tormentas não é mais felicidade para elas. As almas femininas suficientemente fortes para colocar o infinito no amor constituem angélicas exceções e são entre as mulheres aquilo que entre os homens são os gênios. As grandes paixões são raras como as obras-primas. E, fora desse amor, não há senão arranjos, irritações passageiras, desprezíveis como tudo o que é pequeno.
Em meio aos secretos desastres do seu coração, durante a busca de uma mulher que pudesse compreendê-lo, busca que, diga-se de passagem, é a grande loucura amorosa da nossa época, Augusto encontrou na sociedade mais afastada da sua, na segunda camada da gente de dinheiro, em que os grandes banqueiros ocupam a primeira fila, uma criatura perfeita, uma dessas mulheres que têm não sei quê de santo e de sagrado, que inspiram tanto respeito, que o amor sente necessidade dos socorros de uma grande familiaridade para se declarar. Augusto entregou-se por completo às delícias da mais profunda, da mais tocante das paixões, a um amor puramente admirativo.
Teve inumeráveis desejos reprimidos; nuanças de paixão tão vagas e tão profundas, tão fugitivas e tão impressionantes que não sabemos a que compará-las; parecem perfumes, névoas, raios de sol, sombras, tudo o que na natureza pode brilhar um momento e desaparecer, avivar-se e morrer, deixando no coração largas emoções.
Desde que a alma seja ainda bastante jovem, para gerar a melancolia, as longínquas esperanças, sabendo encontrar na mulher mais que a mulher, não será a maior felicidade que pode acontecer a um homem amar tanto que lhe permita sentir mais alegria em tocar numa luva branca, em roçar nuns cabelos, em ouvir uma frase, em deitar um olhar do que na posse mais ardente de um amor feliz? Assim, as pessoas repelidas, as feias, as infelizes, os amantes desconhecidos, as mulheres e os homens tímidos, só eles conhecem os tesouros que encerram a voz da pessoa amada. Tendo sua origem e seu princípio na própria alma, as vibrações do ar carregado de fogo põem tão violentamente os corações em comunicação, transportam tão lucidamente os pensamentos, são tão pouco mentirosas, que uma só inflexão é, muitas vezes, um desenlace. Quanto encantamento não prodigaliza ao coração de um poeta o timbre harmonioso de uma doce voz! Quantos pensamentos ele não desperta! Quanto lenitivo não expande! O amor está na voz, antes mesmo de confessado pelo olhar.
Augusto, poeta ao modo dos amantes (entre os poetas que sentem e os que exprimem, os primeiros são os mais felizes), saboreara todas as primícias do contentamento, tão grandes e tão fecundas. Ela era dotada da garganta mais suave do que a que pudesse desejar a mais artificiosa das mulheres para iludir à vontade; possuía a voz argêntea, doce aos ouvidos, que só se faz estrepitosa para o coração que perturba e comove, que acaricia abalando. E essa mulher ia à noite à Rue Soly, junto à Rue Pagevin, e sua furtiva aparição numa casa infame acabava de matar a mais magnífica das paixões! A lógica do vidama triunfava.
“Se ela trai o marido, este e eu nos vingaremos”, pensou Augusto.
E havia ainda amor naquele se... A dúvida filosófica de Descartes[24] é uma polidez com a qual sempre se deve honrar a virtude.
Soaram dez horas. Nesse momento o barão de Maulincour lembrou-se de que a amada devia ir a um baile, numa casa a que ele tinha acesso. Vestiu-se num instante, partiu, chegou, procurou-a disfarçadamente pelos salões. Vendo-o tão azafamado, disse-lhe a sra. de Nucingen:[25]
— Não vê a sra. Desmarets, não é? Ela ainda não veio.
— Boa noite, querida — disse uma voz.
Augusto e a sra. de Nucingen voltaram-se.
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