“Eu sou o único a saber o que há de horrível em A duquesa de Langeais”, escreveu à condessa Hanska, que devia conhecer toda a malvadez de sua predecessora (provavelmente para não cair nos mesmos excessos): “Abomino a sra. de C***, pois ela quebrou esta vida sem me dar outra, não digo comparável, mas sem me dar o que prometia”. Um pouco mais tarde, depois de acabado o romance, escreverá ainda: “Meu Deus, o livro está feito; não estou bastante rico para aniquilá-lo, mas ponho-me a seus joelhos pedindo-lhe que não o leia”.

A análise dos avanços e dos recuos da duquesa de Langeais — essas dolorosas memórias sentimentais de Balzac — é uma obra-prima mesmo para quem lhe ignora a base real: “Palpitarás, estremecerás ao ler Não toque no machado (título primitivo da novela), que é, em matéria de mulheres, o que fiz até hoje de maior”, escreverá ainda à condessa; mas o conhecimento de tais elementos de biografia faz compreender melhor a inesperada inclusão no romance de uma verdadeira dissertação sobre os erros políticos do Faubourg Saint-Germain, o último reduto da aristocracia francesa. A marquesa de Castries e seu tio, duque de Fitz James, líder da oposição monarquista no Parlamento de Luís Felipe, aceitavam a aproximação de Balzac, o qual vinha oferecer a sua pena à “boa causa”; mas depois, melindrado em seus brios de amante, este achava que lhe fora negada a recompensa merecida e, sem abandonar o legitimismo, de que se tornara o defensor a toque de caixa, aproveitava a oportunidade para dar uma lição a essa aristocracia embotada que deveria “privar a burguesia dos seus homens de ação e de talento cuja ambição minava o poder, abrindo-lhes as suas fileiras”, mas que preferia combatê-los.

Assim, pois, as teorias políticas expostas com tamanha virulência e sem ligação aparente com o enredo são também, pelo menos em parte, produto do despeito e da vingança do amante iludido e despeitado.

Resistindo às insistências de Balzac, longe estava a duquesa de imaginar que, assim agindo, abalava o futuro do legitimismo e, portanto, da própria França.

Porém, como afirma Bellessort, A duquesa de Langeais “não é apenas a vingança da imaginação exercida por Balzac contra a sra. de Castries. Encontra-se nela a análise mais dramática do coquetismo feminino em tudo o que tem de instintivo e calculado, de inteligente e felino... Mas esses jogos requintados e lancinantes parecem convidar o terrível jogador mais mascarado que os Treze, e que se chama Acaso. Intromete-se no jogo, atrasa um relógio, faz dois desesperos e um cadáver. Alguns leitores talvez preferissem que a coisa se passasse com mais discrição, que Balzac não tivesse perturbado as ondas do Mediterrâneo nem os conventos de carmelitas nem suscitado em torno de seus amantes mistérios comparáveis aos das Mil e Uma Noites. Por mim, não me importo com isto. Aceito o romanesco de Balzac como a fantasia de Musset com a condição de que, além das fronteiras habituais de nossa pobre vida, um e outro me façam encontrar a verdade dos sentimentos e as misérias reais do coração”.

Alain, ao percorrer as divisões de A comédia humana como os círculos de Inferno, encontra a grandeza na impassibilidade final de Montriveau e na inflexibilidade com que ele se encarrega de seu próprio castigo. “Por seus meios selvagens, ele realiza a sua própria infelicidade e a da mulher a quem ama; nem por isso sente remorsos, nem sequer arrependimento; galopa atrás das consequências sem disputar consigo mesmo. Afinal, diante do cadáver, põe fim à caça. Que sinceridade em suas ações! Que sublimidade do sentimento nessa capela das carmelitas! Quero dizer que Balzac não desaprova e eu tampouco. E suspeito que tais caracteres e tais situações definem o ideal.”

É prova autêntica do gênio de Balzac não se ter restringido a castigar num libelo acusatório a namorada que o decepcionara. A partir do momento em que é abrasada pelo fogo da paixão, a orgulhosa aristocrata se metamorfoseia em mulher, dominada pelo amor, pronta a tudo sacrificar ao homem que tentou conquistá-la. O drama dos dois é causado pelo fato de os acessos de paixão da duquesa e do general não se terem manifestado simultaneamente.

Convém lembrar aqui uma adaptação cinematográfica admiravelmente realizada por Edwige Feuillère e Jacques de Baroncelli, pelo fato de ter dado ensejo ao nascimento de mais uma obra-prima: o script, feito por Jean Giraudoux. Este grande escritor conseguiu criar uma segunda Duquesa de Langeais, substancialmente igual à primeira e, no entanto, diferente numa infinidade de pormenores, todos inspirados num profundo conhecimento do mundo balzaquiano e nas nobres possibilidades, ainda insuficientemente exploradas, dessa nova arte. Giraudoux desnuda o enredo central de todos os acessórios: faz girar, em determinado momento histórico, toda a vida da elite parisiense em volta do duelo da duquesa e de Montriveau, focalizando-o ora deste, ora daquele ponto. Um acréscimo particularmente feliz é constituído pelos rápidos instantâneos em que Luís xviii comenta com um de seus cortesãos as sucessivas fases de tal espetáculo. Os traços tornam-se mais incisivos, os golpes mais cruéis, a fatalidade mais onipresente; ao lado dos dois protagonistas cresce a figura de Ronquerolles, teórico implacável de um maquiavelismo sentimental. O script de Giraudoux vale como o melhor comentário até hoje feito de um romance de Balzac.

 

Em A menina dos olhos de ouro, Balzac, decididamente homem de todas as ousadias e sempre precursor de alguém, toca num assunto até então pouco tratado em literatura, o do amor lésbico, “uma paixão terrível ante a qual recuou a nossa literatura, que, no entanto, não se espanta de nada”. Toca nele, aliás, sem intuitos sensacionalistas; em A comédia humana e particularmente nas Cenas da vida parisiense nenhum vício, nenhuma chaga do século devia faltar. Mais uma vez Bellessort tem razão: “Fosse qual fosse esse assunto, tratava-o sem procurar o escândalo, sem complacência malsã, com um respeito ao leitor que hoje apreciamos melhor... Não acredito que haja uma única pintura licenciosa em sua obra, onde o amor é analisado até em seus piores erros e onde tantas criaturas agonizam sob a tirania do desejo, a que ele chamava o rei da criação”.

O que o assunto possui de escabroso desaparece, com efeito, na riqueza de motivos com que Balzac sabe envolver a história de Paquita Valdez. É nesta novela que conhecemos a formação e a mocidade de Henrique de Marsay, o protagonista de A comédia humana que aparece a cada passo com sua beleza satânica e seu provocador amoralismo, e a quem Balzac se compraz em nos apresentar em situações cada vez mais altas, até fazê-lo presidente do Conselho. Esse gozador cínico, justificado pelo êxito, é manifestamente um dos heróis preferidos do romancista. Chega este a exaltar o singular sistema de educação que o produziu e a personalidade de seu preceptor, o padre de Maronis, “admirável tipo dos homens que hão de salvar a Igreja Católica, Apostólica e Romana, comprometida a esta altura pela fraqueza de seus recrutas e pela velhice de seus pontífices”, o qual leva seu aluno muito pouco às igrejas, mas o conduz algumas vezes aos bastidores e frequentemente às casas das cortesãs! Eis-nos mais uma vez em pleno romantismo.

Ao lado de De Marsay, acessoriamente, aparece Paulo de Manerville, e seu retrato moral faz-nos compreender melhor a facilidade com que é logrado pela sra. Evangelista e sua filha, em O contrato de casamento.

Contribui para a complexidade da novela a patética descrição inicial de Paris, em que nos vemos arrastados pelo escritor em sua viagem pelos meandros desse novo Inferno. Foram essas páginas, com muitas outras de Balzac, que fixaram para sempre a imagem mítica de Paris aos olhos do mundo inteiro, e tal imagem nos interessa profundamente, porque a Paris de 1830 era uma prefiguração de todas as metrópoles modernas, inclusive a nossa.

A nenhum leitor escapa a riqueza de colorido desse estranho episódio.