— Pode-se-lhe confiar a bolsa e os segredos. Mas a mim o que me fazia aclamá-la rainha era a sua indiferença burbônica pelo favorito decaído.
— É como a mãe, cara demais — disse Des Lupeaulx. — A bela Holandesa era capaz de engolir os rendimentos ao arcebispo de Toledo; arruinou dois tabeliães...
— E sustentou Máximo de Trailles[33]
quando ele era pajem — disse Bixiou.
— A Torpedo é cara demais, como Rafael, como Carême,[34]
como Taglioni,[35]
como Lawrence,[36]
como Boulle,[37]
como todos os artistas de gênio eram demasiado caros... — disse Blondet.
— Ester nunca teve essa aparência de senhora da alta-roda — disse então Rastignac, mostrando a mascarada a quem Luciano dava o braço. — Eu aposto na condessa de Sérisy.[38]
— Sem dúvida — replicou Du Châtelet. — E assim fica explicada a fortuna do sr. de Rubempré.
— Oh! A Igreja sabe escolher os seus levitas! Que bonito secretário de embaixada ele dará! — disse Des Lupeaulx.
— Tanto mais — tornou Rastignac — que Luciano é um homem de talento. Esses senhores têm mais de uma prova disso — acrescentou, deitando os olhos a Blondet, a Finot e a Lousteau.
— Decerto, e é rapaz que irá longe — disse Lousteau, a estourar de inveja —, tanto mais que tem o que nós chamamos
independência nas ideias
...
— Foste tu que o ensinaste — disse Vernou.
— Mas enfim — replicou Bixiou olhando para Des Lupeaulx — apelo para a memória do senhor secretário-geral; aquela mascarada é a Torpedo, aposto uma ceia...
— E eu aceito a aposta — disse Du Châtelet, interessado em saber a verdade.
— Vamos, Des Lupeaulx — disse Finot —, veja se reconhece pelas orelhas a sua antiga ratinha...
— Não é preciso violar a máscara — tornou Bixiou —, a Torpedo e Luciano hão de tornar a passar por nós, e eu então me comprometo a provar-lhes que é ela.
— Então o nosso amigo Luciano está outra vez na berlinda? — disse Nathan, que viera juntar-se ao grupo. — Eu julgava-o no Angoumois para todo o sempre. Teria ele descoberto algum segredo contra os “cadáveres”?
— Fez uma coisa que tu não farás tão cedo — respondeu Rastignac —; pagou tudo o que devia.
O mascarado gordo acenou com a cabeça em sinal de assentimento.
— Um homem que cria juízo apesar de tão novo é porque perdeu completamente o juízo; perde a audácia e torna-se capitalista — volveu Nathan.
— Qual! Aquele há de ser sempre grande senhor e ter sempre em si uma elevação de ideias que o coloque acima de muitos homens presumidamente superiores — respondeu Rastignac.
Nesse momento, jornalistas, dândis, ociosos, todos examinavam, como alquiladores examinam um cavalo à venda, o delicioso objeto da sua aposta. Aqueles juízes encanecidos no conhecimento das depravações parisienses, todos de um espírito superior e, cada um na sua esfera, igualmente corrompidos, igualmente corruptores, todos votados a ambições desenfreadas, habituados a tudo supor e a adivinhar tudo, tinham os olhos ardentemente fitos numa mulher mascarada, que só eles podiam decifrar. Só eles e alguns frequentadores do baile da Ópera podiam reconhecer, sob a comprida mortalha do dominó preto, debaixo do capuz e da gola que escondem completamente as mulheres, a redondeza das formas, as particularidades do andar e das maneiras, o movimento da cintura, o porte da cabeça, as coisas menos perceptíveis aos olhos vulgares e para eles mais fáceis de ver. Apesar desse invólucro informe, puderam reconhecer o mais comovente dos espetáculos, isto é, o que apresenta aos olhos uma mulher animada pelo verdadeiro amor. Fosse a Torpedo, a duquesa de Maufrigneuse ou a sra. de Sérisy, o último ou o primeiro degrau da escada social, aquela criatura era uma admirável criação, o relâmpago dos sonhos felizes. Aqueles rapazes velhos, ou velhos juvenis, tiveram uma sensação tão viva que invejaram a Luciano o privilégio sublime daquela metamorfose da mulher em deusa. A mascarada estava ali como se estivesse sozinha com Luciano; para aquela mulher não se encontravam ali dez mil pessoas nem uma atmosfera pesada e cheia de pó; ela se sentia debaixo da abóbada celeste dos Amores, como as madonas de Rafael debaixo de sua oval de ouro. Não sentia as cotoveladas; a chama do seu olhar partia dos dois orifícios da sua máscara e encontrava-se com os olhos de Luciano; finalmente o frêmito do seu corpo parecia ter por princípio o próprio movimento do seu amigo. Donde virá essa chama que brilha em torno de uma mulher enamorada, e que a assinala entre todas? Donde virá essa ligeireza de sílfide que parece transformar as leis da gravidade? Será porventura a alma que se evola? A felicidade terá virtudes físicas? A ingenuidade de uma virgem, as graças da infância traíam-se por baixo do dominó. Posto que separadas e andando, aquelas duas criaturas pareciam-se com esses grupos de Flora e Zéfiro, sabiamente enlaçadas pelos mais hábeis estatuários, mas aquele era superior à escultura, a maior das artes; Luciano e o seu dominó faziam lembrar esses anjos que se ocupam de flores ou de aves, e que o pincel de Gian Bellini[39]
colocou sob as imagens da Virgem-Mãe; Luciano e aquela mulher pertenciam à Fantasia, que está acima da Arte como a causa está acima do efeito.
Quando aquela mulher, que tudo esquecia, chegou a um passo do grupo, Bixiou chamou alto: “Ester!”. A infeliz voltou logo a cabeça, como quem ouve chamar pelo seu nome, reconheceu o malicioso sujeito e baixou a cabeça como um agonizante que exala o derradeiro alento. Ouviu-se uma grande gargalhada, e o grupo dispersou-se pelo meio da turba como um bando de arganazes assustados, que da beira de um caminho se recolhem às suas tocas. Só Rastignac não se afastou muito para não parecer que fugia aos olhares faiscantes de Luciano; e pôde ver duas dores igualmente profundas, apesar de veladas: em primeiro lugar a pobre rapariga como que assombrada do raio; depois o mascarado incompreensível, o único que ficou do grupo. Ester disse uma palavra ao ouvido de Luciano, sentindo vergarem-se-lhe os joelhos, e Luciano desapareceu com ela, amparando-a. Rastignac seguiu com a vista o par e ficou abismado nas suas reflexões.
— Donde lhe vem aquele nome de Torpedo? — disse-lhe uma voz cava que o penetrou até as entranhas, porque já não era disfarçada.
— Oh! É com efeito ele... ele, que ainda uma vez se evadiu... — disse Rastignac à parte.
— Cala-te ou esgano-te — respondeu o mascarado tomando outra voz.
— Estou satisfeito contigo; cumpriste tua palavra e tens portanto mais de um braço às tuas ordens. Sê doravante mudo como um túmulo; mas antes disso responde à minha pergunta.
— Pois bem! Aquela rapariga era tão atraente que seria capaz de entorpecer o próprio Napoleão, e alguém mais difícil de seduzir: tu! — respondeu Rastignac afastando-se.
— Um momento — disse o mascarado. — Vou mostrar-te que é impossível teres-me visto já em alguma parte.
O homem desmascarou-se, e Rastignac ficou um pouco hesitante, não encontrando nele coisa alguma da hedionda personagem que outrora conhecera na hospedaria Vauquer.
— O diabo tudo lhe deixou mudar, menos os olhos, que ninguém pode esquecer — disse-lhe ele.
A mão de ferro apertou-lhe o braço, recomendando-lhe um eterno silêncio.
Às três horas da manhã, Des Lupeaulx e Finot foram ainda encontrar o elegante Rastignac no mesmo sítio, encostado à coluna em que o terrível mascarado o deixara. Rastignac tinha-se confessado a si próprio: fora padre e penitente, juiz e acusado.
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